Das cavernas


Lembro-me, perfeitamente, de que ontem estive duas horas em frente ao espelho, da casa de banho, a escanhoar a barba. Limpei todos os pelos, mesmo aqueles que nascem nos sítios mais inusitados, junto ao nariz ou quase no pescoço. Uns ali, ridículos, a meio da face, outros a fugir para o ouvido.
A cara ficou lisinha, desinfetei, coloquei creme e massajei, a pele perfeita. Nunca tinha perdido tanto tempo com a apresentação da minha cara, mas estava-me a apetecer regressar a uma cara de menino. Claro que o resultado foi desastroso: continuei um velho de cara rapada com uns olhos de coruja enfiados, sem critério, no meio da cara, onde uns papos se apresentam a descair como sacos lacrimais do mais rasca que há.
 Fiquei satisfeito com a limpeza de pele, recordando o odor de antigas loções, cremes, artefactos de barbeiro e de barbearia, a taça para fazer a sabonária com que se ensaboava a cara, o pincel e até a velha lâmina guardada, junto com navalhas, pinças e panos para, aquecidos, amaciarem a pele antes do corte e deixarem a pele rosadinha a cheirar a cu de menino.
Por isso, foi com surpresa que esta noite ao virar-me na cama, procurando uma posição mais confortável para dormir, coloquei as mãos por debaixo do queixo, segurando a cara contra a almofada e notei a existência de cabelos, ou seja, de uma barba a despontar. Normal, dir-me-ão, a barba (ou seja os cabelos da cara, tal como os da cabeça) crescem todos os dias, e após algumas horas, depois de terem sido cortados já estão a mostrar-se, mesmo quando cortados rentes. Aparecem até mais agressivos, se cortados rentes, como que furiosos e espetados por lhes ter sido negada a  liberdade de viver ao livre.
O facto pareceu-me excessivo, mas não liguei muito. Sempre tive uma barba serrada e que cresce sem que se detenha. Alturas houve em que tinha de fazer a barba duas vezes ao dia – se necessitava de uma apresentação cuidada por um qualquer motivo profissional – transportava a máquina de barbear um uma lamina descartável na pasta dos utensílios pessoas, para num instante, abrigado numa qualquer casa de banho publica, proceder ao desmatamento da cara. Depois vieram as modas das caras com uma barba rala, aparada, de ter o ar de desleixo cuidado, de barba por fazer com dois dias e essa prática foi abandonada. Até ficava mais sedutor com a barba por fazer.
Quando me levantei, eram seis horas da manhã, e fui á casa de banho fazer uma coisa que a minha mãe me tinha aconselhado a fazer sempre: lavar a cara antes de tudo, fiquei estupefato: estava com a cara enrugada, por debaixo de uma barba com dias de ausência de corte. Tinha envelhecido meses, numa única noite? Tinha dormido, não uma, mas vários noites? Tinha sido sujeito a tratamento para fazer crescer o cabelo, quando pensava que estava a alisar e a espelhar glifosato pela cara?
A barba era preta e branca, com manchas e cabelos retorcidos. Caia-me pelo lábio abaixo tapando-me a boca. Os pelos saiam das orelhas e desciam por ali até ao queixo onde se juntavam numa alegria de crianças a chapinhar numa poça de água. Na base da garganta enrolava-se um tufo de cabelos como um matagal que davam a volta ao pescoço ligando-se atrás ao cabelo. A água que atirei para a cara, caiu nesta espessura de  infestante rastejante indomável, pingando para o chão, e nem chegou à pele. Consegui limpar os olhos com dois dedos, alisar as sobrancelhas e lavar os dentes com muito esforço, pois vou ter que comprar uma escova com o cabo retorcido para que possa penetrar na armadura que protege os dentes e os lábios. Vou ter de comer por uma palhinha?
Debaixo do chuveiro, procurei perceber se não tinha sido uma brincadeira. Tentei puxar de um dos lados e do outro para ver se aquilo se desapegava. Alguém me tinha enfiado uma máscara e era uma falsa barba, mais uma protecção idiota contra o vírus e a poluição que grassavam por aí. Poderia ser uma barba removível, pois não permitia que eu respirasse poeiras e gotículas, embora também haveria de ficar cheia de patogénicos voadores  que era preciso matar, remover e eliminar de tempos a tempos. Borrifei a cara com álcool, depois com água oxigenada e por fim esfreguei sabão azul e branco até estar coberto de espuma. Experimentei uma loção e outra recomendada para usar com a primeira e antes da terceira, e uma mistura de cheiros e preparados de higiene, para consumidores patológicos compulsivos, com a mania de beleza inundaram a casa de banho que ficou a cheirar a pocilga de artista desesperado com aspirações a “famoso”. Mas, depois disto tudo, a barba continuava lá.
Valeria a pena iniciar o processo cirúrgico de remoção dos pelos na cara, com o sistema habitual do corte da ceifeira? Vesti-me, sai para a rua já estava atrasado.

Reparei que muitos dos que por mim se cruzavam, seja de automóvel, seja a pé, em passo rápido, pelas estradas da vida e do emprego, usavam barba como eu.
Nas televisões havia tipos a falarem com umas barbas hirsutas. O fenómeno, afinal, não era eu, era global. Liguei o radio do carro. Tinha havido um soluço na fita do tempo e a humanidade tinha regressado dez mil anos atrás na evolução. Era a explicação que era apresentada. Num qualquer ponto zen ou de uma outra marca qualquer da evolução, (vinda do oriente tudo vem do oriente, a maçonaria, a profecia do Nostradamus e os capitais que estão a comprar a nossa economia) algo tinha corrido mal e um tal bug fora bolha e borbulha que ao rebentar fizera regredir o homem para muito próximo das cavernas. Não em todos os sentido e formas de vida, mas apenas na sua forma exterior e na protecção para o clima natural exterior no inverno, que era de ter cabelos e pelos em todo o corpo. No verão, até as ovelhas sabem que precisam de ser tosquiadas.  Os cientistas estavam a tentar perceber se esta alteração capilar e no sistema evolutivo do corpo, também teria afetado o cérebro dos seres humanos. Parecia que não, embora, na minha opinião, muitos já muito antes disto acontecer, tenham sido afetados no cérebro com mutações genéticas regressivas. Mas isso era outra história.

E agora. Sim, havia filas á porta dos barbeiros e cabeleireiros. Maravilhoso mundo novo. Coloquei uns óculos escuros e segui em frente. Tínhamos problemas para dias de opiniões e contra opiniões. E logo agora que o futebol dava um ar da sua graça e os jogadores voltavam a ser barbudos como o Fidel de Castro e a sua banda, cuja musica muito aprecio. Acho que eram estes músicos que eram considerados “guedelhudos” porque usavam o cabelo por cima das orelhas, não eram? (sim havia efeitos colaterais no frisson do universo, que desequilibrava um dos lados do cérebro) A vida estava sempre a apresentar-nos surpresas. E curioso, ninguém havia morrido, como dissera o Saramago um dia em que lhe apetecera estar contra o sistema, repetindo aliás a mesma teses que o Fernando Pessoa já glosara, e por isso as estatísticas planavam no socalco.
Uma maravilha, se me é permito ter opinião. Quando cheguei ao estacionamento do local de trabalho, na periferia da cidade, coloquei a mascara que usava pendurada no retrovisor, em substituição de um Cristo já antigo e de um cãozinho que abanava a cabeça e fui ao encontro do diabo, que como todos sabemos é o nosso patrão de todos os dias. Disse bom dia. O diabo estava lá ao fundo e nem levantou os olhos do que estava a fazer para me responder: estava a tecê-las! A educação nunca foi o seu forte, mas, enfim, é o patrão.

Carlos Arinto



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