O convite

Fico sem saber o que fazer. O que fazer? O que fazer? A mensagem era clara. Podemos encontrar-nos? Talvez, tomar um café. Absurdo. Não vejo aquela pessoa há vinte anos. Como se nada houvesse acontecido, neste espaço de tempo, o convite surge com a frieza das palavras no ecrã do teclado. Porque não? Bem, porque nada acontece por acaso, assim da noite para o dia, assim como se o tempo não existisse e tudo recomeçasse no ponto em que foi interrompido. Estamos mais velhos: vinte anos fazem muita diferença. Então, agora temos que voltar a viver tempos antigos? Primeiro uns amigos, depois uma namorada, agora… uma conhecida, depois uma sócia, um ex-empregado… também um familiar que se havia afastado. A vida vai e volta. Não sei se estou de acordo, se quero, se é minha vontade ir “tomar um café”. E nesta pequena indefinição e hesitação está todo um universo de sentimentos, desejos, vontades e angustias que não gostaria de sofrer, nem ser paciente. Paciente na serenidade e na acomodação ao sofrimento, como paciente na vontade de esperar que tudo passe e que a água que se abriu para deixar que o miúdo mergulhasse – quando saltou da prancha, no cais onde os barcos acostam, embora hoje não o façam, por ser feriado – se volte a unir e a unificar, mostrando um espelho perfeito e mentiroso de que “nada se passou”. Não sei, ou melhor sei muito bem. Quero e não quero. Como muitas vezes acontece. Conhecendo-me bem, sei que ao decidir por um deles, irei fazer, exatamente, o seu contrário. Não consigo fazer com que o racional prevaleça sobre os sentimentos, os impulsos, a volúpia e o disparate. Sim, porque será um disparate ir “tomar café” com quem me convida. Sei muito bem, tomar café sozinho, não preciso que me segurem na chávena, que me mexam o açúcar – eu sei, estou gordo porque continua a beber o café com açúcar, duas doses se puder, café também é xarope? – (retomemos onde ficámos) que me contem uma história enquanto bebo o café. E tenho muitos outros prazeres na vida. Não sou um velho caquético, que já só gosta de ver as raparigas novas, com os filhos pela mão, no jardim onde os outros velhos jogam às cartas. Eu não gosto de jogos. Eu não gosto de nada. Sou rezingão e excêntrico. Impossível de aturar. Falo alto, sou exibicionista e tenho a mania que sei o que os outros não sabem. São segredos. Por isso, por tudo isso, ir beber um café para quê? Para falar da vida dos outros? Não me interessa. Para falar do que acontece pelo mundo? Vejo na televisão. Para falar de mim e de ti…era só que faltava. Claro que quero ir. Claro que quero saber. Mas, resisto. Não vou! Vou dizer que não vou. Esqueço o convite, esqueço que te conheço, esqueço que houve passados e ignoro que possa haver futuros, porque o futuro é já amanhã e tenho pressa de chegar, ao fim da vida, tranquilo e sereno. Se começo com as despedidas, esgoto os amigos, as namoradas, os conhecidos, os familiares e aqueles trastes que possam vir no molho a compor o ramalhete. E depois terei que ir fazer novos amigos e amizades, e…já não tenho pachorra. Não quero conhecer ninguém. Não quero ser amigo de ninguém. Muito menos amores, ou relações duvidosas. Agora que se acabaram os beijos e os abraços – e assim é que estamos bem – a vida é muito melhor e assemelhando-se a um desporto radical, traz mais adrenalina do que saltar de paraquedas, descer uns rápidos de canoa, ou cruzar o Alentejo de balão. Estou muito bem assim. Quase morto, mas disposto a tudo para continuar a ver nascer o sol, das janelas da minha varanda, sentir o trote sincopado do cavalo que o meu neto monta ou apreciar a cor do vinho da nossa última colheita, que saiu dourado, escuro prateado e a saber a zimbro e a morangos silvestres. Estou muito bem assim. Sentado quando quero, levanto-me quando quero. Como quando tenho fome e durmo quando tenho sono. Para quê sacudir este mantra com “cafés” sem sentido? Como sal em excesso, como doces em demasia, bebo aguardentes velhas e saboreio gorduras e nada me matou ainda. Talvez não falte muito, é verdade, por isso tenho de aproveitar. Pelo menos por enquanto o meu médico assistente diz-me que os “indicadores” e os “parâmetros” são bons. Excelentes, mesmo. Sejam indicadores e parâmetros o que forem. Eu quero lá saber! Portanto está decidido. Não respondo. - A que horas, e onde? Juro que não fui eu. (por vezes acontece-me ter uma mão fantasma de escrita, resquício de um período em que quis ser poeta. Não resultou, mas a minha mão move-se sem eu autorizar. Uma chatice) Carlos Arinto

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