A Estátua Infinita

   O poeta pensa na vida, na sua estranha imobilidade tensa. O pálido sol bate-lhe na cabeça, o vento abana os ramos do carvalho debaixo do qual pararam a sua cadeira de rodas. O poeta ainda é novo, como todos os poetas. O seu pensamento perde-se no infinito, longe do seu corpo atrofiado pela esclerose. Ainda sonha, ao contrário de muitos que abandonaram a luta. Cada dia é um novo dia. Regressa do infinito. Dá um toque no comando da cadeira, que se mexe exactamente cinco centímetros na direcção certa, e a estátua em que se transformou há dez anos mexe-se. Esboça um ténue sorriso. Uma criança passa a correr. Pára. Interroga-se sobre aquele estranho velho, sentado na cadeira, com as finas pernas amaradas uma à outra. O contraste é evidente e emociona o poeta. A poesia e o sonho são as únicas coisas que têm de comum. Imagina uma estrofe. A mais bela de todas. Nela se interliga a vida, o sonho e a vontade de viver. Um sonho infinito, tal como é infinita a vontade de ser. A criança desaparece. Sentado no seu pedestal, o poeta acredita mesmo que nunca terá existido. Não passa de uma miragem num deserto sem gente. 


    A sua atenção prende-se agora num jovem que se senta num banco de jardim à sua frente, a atenção dominada pelo seu telemóvel, num autismo voluntário. O mundo resumido a um rectângulo de 5” na diagonal. O poeta abana a cabeça. Rezaria pelas almas desatentas e pelos destinos perdidos, caso não se tivesse divorciado de Deus aos 15 anos, numa sexta-feira de chuva. O ateu é um triste solitário que só tem diálogos internos com ele próprio. Ouve música. Uma batida constante, irritante, neutra, intoxicante. Pum. Pum. Pum. A alma dilacera-se, desintegra-se a cada pum. Um casal senta-se ao lado do poeta. São pouco mais velhos do que o jovem que levanta o olhar para se fixar no decote avantajado da rapariga. Sempre há esperança, pensa o poeta. O namorado dela não gosta da brincadeira. Insinua uma cena, a rapariga acalma-o, o jovem faz um gesto apaziguador. Nada acontece. A música continua. O poeta percebe que vem da mochila do namorado da rapariga.  Não consegue pensar. Eles riem. Beijam-se. Acariciam-se. Para eles, o poeta não passa de uma estátua, não existe. Refugia-se novamente no infinito. Os ecos da música tornam-se efémeros, distantes. Estranhamente agradáveis. Ele está de pé. No infinito, o corpo obedece a todos os pedidos. A juventude é o infinito, percebe o poeta. Gostaria de conseguir falar para explicar ao jovem casal esta epifania, mas percebe, pelo silêncio, que eles já não estão lá. O poeta percebe que o jovem fixa o seu olhar nele. Vê-lhe o brilho da curiosidade. Há esperança, pensa o poeta, mais contente. 


    A menina regressa, com os pais. Faz uma festa ao passar pelo poeta. Ele sorri. Há algo de puro na infância que perdemos ao longo da vida. O amadurecimento é uma armadilha, um logro. A velhice uma fraude. A infância é a única fase das nossas vidas onde somos, realmente, nós próprios. 


    Viemos do pó e, no final, somos todos transformados em poeira cósmica. No infinito. 



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