O susto



Foi terrível. Ainda hoje não sei como escapei com vida para contar como foi. Tudo começou com aquela impulsão pelo turismo, que depois se transforma em saturação. Viajar, viajar, viajar era uma rotina. Nada de novo, íamos ver o que já conhecíamos da escola, da universidade, dos livros e da internet, mas que agora “cheirávamos” ao vivo.
Casa viagem sempre foi uma aventura. Ao fim de algum tempo começamos a querer coisas diferentes, coisas novas, situações arriscadas ou então, no inverso, ficarmos afastados das multidões e dos grandes aglomerados de pessoas que constituem a decoração deste planeta. O turismo, o viajar e o conhecer outros lugares é um vício como outro qualquer.
A nossa maior emoção, pela negativa, foi visitar Auschwitz. Pela positiva Veneza. Fora da Europa o Japão e alguns países africanos deixaram-nos com o gosto amargo de conhecermos pouco do muito que haveria a explorar. O Brasil e os Estados Unidos deixaram-nos indiferentes. Fomos a muito lado e esquecemo-nos – ou não tivemos oportunidade de ir a outros. Tal como disse, numa qualquer fase do percurso ficámos cansados, saturados a desejar “mudar de rumo” embora sem nunca desistir de viajar.
Passávamos o ano a juntar dinheiro para as viagens, que depois fazíamos durante dois ou três meses, sem querer saber de clientes ou evolução dos negócios. Vivíamos satisfeitos e a planear, sempre, novas visitas a este ou aquele lugar do mundo, fossem locais históricos, terras desertas, curiosidades de formas de vida, de hábitos alimentares ou exéresse de desenvolvimentos singulares – como a India, com as suas castas a Coreia do Norte, com o seu secretismo social e politico, a existência das grandes regiões russas inóspitas ou o mais tribal local da Amazónia – todos constavam do nosso plano de viagens. Em muitos estivemos.
África seduzia-nos, mas as ilhas do Pacifico também nos aliciavam. E até mesmo as grandes zonas desertas e geladas de ambas as calotas, eram para nós possibilidades de visita a programar e a concretizar, num futuro que não queríamos longínquo. Apesar da idade, continuávamos a recusar as viagens em grupo, e éramos nós, os únicos responsáveis pela nossas vidas, conhecimentos, relações e aventuras que ao longo da vida havíamos feito e continuávamos a realizar. Talvez, agora, com mais ponderação e alguma cautela, mas indo a lugares que muitos não ousavam.
Naquele ano, foi sem surpresa que decidimos ir ao Alasca, uma terra, sem ninguém, mas com muitas particularidades interessantes. Apetecia-nos descansar, percorrer a pé, longas distancia, perceber o que esta terra, como parte integrante de um País, tinha de curioso. Desde logo, porque toda a população tinha um “rendimento estatal” anual garantido, com origem na exploração dos recursos naturais existentes. Depois, porque sendo terra enorme, era uma aproximação ao termo Glacial, que queríamos explorar em expedição futura, quer a norte quer a sul, dos pinguins aos ursos polares.
Sem arrebatações queríamos dois meses de aprendizagem da cultura autóctone e das pegadas dos antigos: orientais, dinamarqueses e russos. Viver na serenidade de lagos, montanhas, parques naturais e calotes de gelo, observando um dos últimos redutos da biodiversidade ameaçada pelas alterações climáticas.
Viajar pode ser fazer história que ainda não aconteceu.
Tratava-se, portanto, de uma pausa na nossa compulsão; uma esquirola na arte de viajar, porém…

Chagámos ao Alasca num dia de sol. Desde já aviso que não me peçam para dizer onde estou, onde fomos, como é o nome dos lugares que visitámos, porque tudo aquilo é impronunciável. A língua oficial é o inglês, mas deve ser um inglês muito especial porque não “pescávamos” uma frase, nem entendiamos nada quando falávamos com as pessoas. Habituados às diferentes línguas, falajares e pronuncias, bem como alfabetos e sistemas de comunicação sofisticados ou apenas tribais, não tivemos dificuldade em nos fazermos entender e explicar o que queríamos.
Claro que o Alasca é Estados Unidos, depois que o secretário de Estado William H. Seward  comprou aquele território à Rússia em 1867. Mas um território que se diferencia de todo o restante território estadunidense.
O turismo, por aqui é rudimentar, senão inexistente. Tínhamos visto alguns documentários sobre formas de vida e técnicas de sobrevivência em canais por cabo e estávamos preparados. Aliás era isso que nos atraia ali. Viver de acordo com a natureza, em contacto com o meio agreste e indómito, conhecer espécies animais e da flora e fotografar tudo o que pudesse ser considerado olímpico e esteticamente belo, para o comum dos mortais, que vivem na balburdia das cidades. Sim, ganhávamos dinheiro com esta actividade, filmando, desenhando, fotografando e escrevendo sobre o que víamos. A literatura de viagens era uma realidade com compradores.
Éramos entrevistados para Portugal e regularmente apareciam cronicas nos jornais e revistas portuguesas. Outros como nós possuíam o impulso do turismo, do viajar do ir…

Ficámos numa casa de montanha. Estava frio e tudo em redor era gelo e penedos. Saímos para explorar os arredores e ao regressar já noite pusemo-nos a ler um livro, que havíamos trazido para as horas mornas do recolhimento, junto à lareira da “cabana”. Tínhamos fotografado diversas paisagens agrestes e uma em particular tinha-nos chamado a atenção: um conjunto de verdes que se espalhavam pelos campos brancos, como bolas felpudas. Pensamos que se trata-se de algum animal da região, tipo porco-espinho ou rato, mas…  - constatámos com surpresa – que estas bolas eram vegetais compostos de musgo e areia. Existiam estáticas e em grande quantidade e depois de as termos observado nunca mais pensamos nelas.
Porém, nessa noite, acordei a sentir que estava a ser espiado. Algo ou alguma coisa me espreitava da janela. Afastei a cortina de supetão e uma dessas bolas lá estava, agarrada à vidraça. Estaria a olhar para mim? Não tinha olhos, que as bolas, tipo esponja não possuem cabeça, nem aquilo a que estamos habituados a chamar órgãos, sejam eles narizes, olhos ou bocas.  Não sendo um vegetal, tínhamos tido oportunidade de o confirmar quando havíamos pegado em algumas para analisar a sua constituição, desfez-se em poeira e limbo voando até cair no chão. Outras mais consistentes mantinham-se na sua forma oval com pequenos sedimentos incorporados.
Voltei para a cama, mas ao fim de alguns minutos constatei que em vez de uma já havia várias na janela.
Fui acordar a minha companheira para lhe relatar o que estava a suceder. Decidimos sair do quarto e ir observar o fenómeno na exterior. A porta estava trancada. Empurrada, com esforço, abriu-se finalmente revelando algumas bolas felpudas no chão e nos gonzos a bloquearem a sua rotação.
Não tínhamos a quem perguntar nada, e fomos até ao exterior, numa noite gelada, feita de luz amarelada e algumas nuvens salpicadas de tons cinzentos. Um batalhão de bolas estava li ao pé, enquanto outras, muitas, se aproximavam, vindas do sul, e de todos os outros pontos cardeais. O que é que se passava?
Como era possível estes seres inanimados e sem vida deslocarem-se e até estarem a ameaçar-nos com a sua presença, criando uma situação de pânico, por não sabermos como reagir? Fomos ao quarto buscar equipamento mais adequado para nos agasalharmos e para estarmos na rua – incluindo a camara de filmar, luvas, barrete e camisola de lã…sim, esqueci-me dos sapatos ou das botas fomos descalços - e tropecei num tufo, à entrada da sala, estatelando-me no chão. Felizmente nada de grave, apenas uma queda. Senti uma “coisa fofa” a saltar para cima de mim. Sacudi-a com uma palmada e agarrando na mão da minha companheira fugimos dali.
Escondemo-nos dentro da viatura “quatro vezes quatro” que tínhamos alugado, cujo motor não quis pegar, talvez devido ao frio ( ou por estar pejado de fofinhos felpudos…pensamos depois) e telefonámos, em desespero para o numero de emergência.
Uma hora depois fomos socorridos – quando já não conseguíamos aguentar o frio – estando a viatura totalmente coberta por estes musgos verdes que faziam tapete em cima de nós, não nos deixando ver para fora nada.
Para sermos verdadeiros e justos, foram elas que nos salvaram a vida, pois aqueceram o interior do carro-. De contrário teríamos perecido por exaustão e Hipotermia.
Os nossos “salvadores” riram-se muito.
- É normal. Sim estes tufos verdes de musgo movimentam-se deslizando no gelo e, empurrados  pelo do vento, escorregam com facilidade.
- São constituídos por areias, cascalhos, detritos e ervas, para além dos musgos rasteiros e rolam como qualquer calhau ou rocha nas ribeiras. Por isso é que possuem este aspeto arredondado, ovalado ou em semicircunferência.
Não ganhámos para o susto. Foi parvoíce termos abandonado a casa a meio da noite, mas estávamos convencidos de que éramos perseguidos e que “aquelas coisas” estavam ali para nos matarem, sufocarem ou exterminar. Porque razão? desconhecíamos. Teríamos feito algo de que não haviam gostado. Ou seria possível que estes seres inanimados e compostos por minerais, e vegetais, fossem carnívoros? Nunca o saberíamos.
Os guardas consideraram isso, um disparate e uma tonteria…coisa de turistas que não conheciam a formas geológicas da região e que se assustavam sem razão, com fenómenos normais. Não, nunca havia acontecido tal coisa. A explicação estava dada. A deslocação destas pepitas de feltro estava estudada desde há muitos anos. Por vezes não se mexiam e cresciam, aumentando de volume, no mesmo sítio onde se formavam. Outras, movimentavam-se e deslocavam-se, sempre em grupo como bando (disseram-nos) desaparecendo para depois voltarem a surgir quando menos se esperava.

No alto da estepe, uma bola maior do que as outras observava. Agitou-se com o vento e o luar começou a desaparecer para dar lugar à madrugada. As bolas infinitas, retirarem-se como que obedecendo a uma ordem. Não estava vento e o gelo brilhava.

Carlos Arinto

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