Quebranto



Quebranto
-Dizem que tens quebranto.
- Sim sinto-me estranha…
- Logo, à noitinha, vem ter comigo tratamos disso. Mas não digas nada a ninguém.
A troca de palavras foi rápida, efetuada disfarçadamente, como os “agentes secretos” fazem nos filmes, quase sem mexer os lábios, enquanto uma e outra admiravam a qualidade da fruta exposta na banca e a frescura das verduras.
O feirante do mercado não deu por que as duas clientes tivessem trocado qualquer palavra e até o espião, colocado no varandim, onde abarcava toda a praça teve dúvidas de que aquelas duas se conhecessem.
Sem ser um dia de enchente, o mercado estava cheio e a azáfama era muita. Ali tudo havia: ovos, galinhas, queijos, verduras, frutas, peixe, frutos secos e leguminosas. As carnes, estavam noutro lado, numa espécie de bancada de talhante, açougue ou “butcher” que hoje o inglês era fundamental para fazer progredir o negócio.
Em frente erguia-se a fumarada dos frangos em assadura e os feirantes do bric-a-brac e dos pózinhos mágicos para todas as medicinas e prazeres gastronómicos. De há uns tempos para cá também uma pequena banca, junto aos comerciantes de flores e árvores para plantar, tinha exposto de forma discreta uma panóplia de artefactos sexuais. Ao lado uma tenda com capas para telemóveis e mais à frente um conjunto de vestimentas “último modelo” do mais vintage possível, que era atração de curiosidade e venda muito superior a quaisquer outros comerciantes que por ali faziam o seu negócio.
Chapéus, bonés e carapuços.
Mariazinha andava acabrunhada. Sentia-se mal. Tinha humores, não estava bem… Hoje, estes sintomas são tratados pela psicologia, pelos médicos e pelas tertúlias de anónimos confrades, mas Mariazinha era reservada, tímida e não queria que soubessem da sua vida.
Ir ao médico é como ir a Deus, sabia… o segredo do confessionário, a confidencialidade entre o advogado e o cliente, a intimidade do clinico e a sua reserva de privacidade. Mas, Mariazinha tinha medo. Não era por nada, era porque sim.
Por isso estranhou quando aquela desconhecida a abordou, naquela manhã, ali na praça. Bem, não era uma desconhecida, era a sua vizinha de rua, que tantas vezes via a passar, para cima ou para baixo e com a qual – uma vez por outra – já tinha trocado um boa tarde, ou um bom dia. Não mais do que isso.
Dizem? Quem diz? Impossível, alguém dizer, não tivera conversa sobre este assunto com ninguém. Seria assim tão evidente pela sua cara, pelo seu corpo, pelas suas posturas? Não, era impossível. E depois, quebranto? Que palavra tão estranha, ainda que fosse problema, feitiço ou diabo no corpo, ainda podia aceitar, mas, quebranto? Era termo que já ouvira dizer, mas nem sabia bem o que significava. E hoje essas coisas já não se usam. Tal como os fatos “vintage” com as calças à boca de sino, as camisolas de gola alta e os vestidos floridos…ninguém usa.
Não acontecera nada de especial, recordou memorizando factos recentes. Não tinha namorado, vivia com os pais e tinha uma vida normal de quem trabalhava e se divertia com os amigos, como todos faziam e apreciavam, sempre que podia e tinha dinheiro para isso. Beber “um copo” ir à discoteca, dançar, passear na praia ao fim de semana, fazer amigos e colocar mensagens nas redes sociais, comentando noticias ou trocando opiniões com outras pessoas. Haveria alguém que lhe poderia querer mal?
Lembrou-se de uns comentários mais azedos nas redes sociais, que trocara com um parvalhão chamado Veiga e de um tal de Luís que a insultara a propósito já nem se lembrava do quê…mas que disparate. O que é que isto tinha a ver?...
O que é facto é que de alguns dias para cá andava sem apetite, custava-lhe a pensar e até sentia dores no corpo. Podia ser gripe, mas não tinha febre e tomara um ben-u-ron logo que os sintomas apareceram, que foi impotente para fazer diminuir o mal-estar. Estava desconcentrada, não tinha vontade para nada e tudo lhe sabia a azedo, até o ar que respirava.
E porque é que respondera à sua vizinha? O mais lógico seria ter ignorado a observação e fazer de conta que não ouvia, que não percebia e nada ter dito. Mas dissera, e bem, agora tinha duas opções: ignorar aquilo ou ir a casa da vizinha logo à noite. Como é que ela se chama? Olha, nem sabia!
Depois do jantar colocou um xaile pelas costa, como agasalho, que os fins de tarde estavam frios, embora o dia fosse abafado e quente e, certificando-se de que não era observada e que ninguém a via, tocou à campainha da porta da vizinha. Tocou, não! porque mal se aproximava, a porta se abriu e lhe franqueou a entrada, sem necessidade de  espera ou cumprimentos supérfluos e desnecessários.
- Sente-se aqui. Disse-lhe. Chamo-me Mia e vou ajudá-la. Percebi que necessita de ajuda, não me pergunte como percebi, pois são coisas minhas. Não lhe levo qualquer valor pelo “trabalho”, porque existe muita maldade no mundo e hoje com a internet, o perigo é pandémico.
- Mas, vamos por partes, para já vamos verificar se está realmente possuída, se alguém a enfeitiçou ou lhe quer mal.
Numa mesa estava um prato fundo cheio de água, ao lado um galheteiro com azeite e uma pequena taça já com um pouco do liquido verde escuro da oliva.
- Sente-se aqui. Não tenha medo, são rezas e saberes antigos, próprios do sítio, lá de onde vim.
Mariazinha observa tudo em redor. A sala tem pouca luz e os móveis são escassos. Quadros estranhos nas paredes, uma televisão ao fundo, desligada. Aceita o convite e senta-se junta da mesa. Mia senta-se também um pouco á esquerda e após um curto silêncio diz:
- Reze comigo:  Deus te viu/Deus te criou/Deus te livre/ De quem para ti mal olhou. Em nome do pai, do filho e do espírito santo/ Virgem do pranto/ Tirai este quebranto.
Enquanto reza faça o sinal da cruz. Outra vez. Mais uma…tem de ser por três vezes. Agora – despeja um pouco de azeite na água – coloque aqui o seu dedo. Molhe o dedo na tacinha com azeite, depois deixe cair cinco pingos na água. Nem mais nem menos: cinco.
O azeite espalhou-se.
- Está a ver, o azeite deveria ficar em pequena bolha, sem se espalhar, duas ou três auréolas, se for muito, mas nunca espalhado por toda a água do prato. Temos de fazer o tratamento.
Mariazinha sentiu um estremeção.
- Não tenha medo. É rápido e não custa nada. Esse frémito que sentiu é já um sinal de que algo vai acontecer.
- Vamos continuar esta reza, até que o azeite fique concentrado em círculos. Quando isso acontecer o quebranto foi quebrado.
Repetiram a lengalenga, por duas ,três… vinte vezes e ao fim desse tempo o azeite deixou de estar espalhado pela água e se uniu num botão de rosa o meio do prato. Várias camadas, na vertical, numa única circunferência espessa.
- Minha querida, vá em paz. Os malvados foram afastados. Foram esconjurados.
Mariazinha sentia-se muito melhor, era um facto, nem queria acreditar. Saiu quase sem dizer obrigado – pelo menos não se lembrava de ter agradecido -  mas fá-lo-ia noutro dia, logo que a oportunidade surgisse…e se não surgisse procurá-la-ia para lhe demonstrar o seu reconhecimento, durasse a sensação de bem estar e regresso à normalidade o tempo suficiente para isso.
O que lhe havia de ter acontecido? Que coisa? e isto porquê? Por causa de opiniões, de conceitos, de confronto de ideias? Que absurdo, mas o  mundo estava absurdo. Cada um julgava-se o “dono disto tudo” e não admitia contraditório. Dizem que era por causa das alterações climáticas, por causa da poluição do planeta. Por cauda da crise financeira que galopava, do aumento dos impostos das dificuldades…mas diz-se tanta coisa!
Afinal todos dizem isso e o seu contrário, mas lá que havia gente muito estúpida era verdade. E as redes sociais tinham vindo exacerbar estes sentimentos negativos. Se contasse isto a alguém o mais provável era dizerem-lhe “arranja um namorado que isso passa” mas Mariazinha sabia que não era isso. Por isso fazia segredo. Lidar com forças ocultas não era a sua especialidade. Ainda bem que encontrara uma pessoas que a compreendera e a ajudara.
Aquela amiga fora realmente sua amiga. Não uma “amiga” do facebook, que é onde agora as pessoas criam relações virtuais, onde se tem conta, sem ser conta bancária, onde se vive a vida que os outros vivem e se morre com a ilusão da realidade. No dia seguinte cruzou-se com Bia na rua e sorriram uma para a outra. Não trocaram uma frase, nem um bom dia. Parecia que se entendiam sem falar, apenas com o pensamento.
Todo o mal desaparecera.
Mariazinha leu num jornal, exposto na montra de uma papelaria que num desastre de automóvel que se despistara sem razão, o condutor não resistira aos ferimentos e tivera morte imediata: chamava-se Carlos Veiga. Era um empresário importante e por isso merecia honras de primeira página. Lá dentro – porque num impulso comprara o jornal – dizia-se que um chefe da restauração estava desaparecido e não era visto há três dias, tendo sido comunicado à polícia que deixara o telemóvel, a carteira e os documentos de identificação em casa. Chamava-se, ou melhor chama-se, porque desaparecido não é morto, Luís.
Olha, espero que tenha mais sorte do que aquele rapper, todo tatuado, que mataram ou aquele cantor pimba que desaparecera nas falésias de Peniche. Os nomes não lhe diziam nada. Havia uma leve parecença com outros nomes, mas eram nomes vulgares, então porque estava a ler estas noticias que eram banais e que, quase todos os dias, acontecem. Coitado do homem. Haveria de aparecer, sem dúvida, talvez tivesse fugido com a amante. Sim, #vai ficar tudo bem#. Ficou!

Carlos Arinto

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