Relatório


Porra! Está a chover, outra vez. Não se mandou arranjar o telhado e agora vai haver merda - assim pensava o administrador do condomínio- enquanto olhava a água a cair na rua, espreitando pela janela.
Era apenas uma telha rachada que mal se percebia, mas a puta da água, mete-se por ali e por todo o lado, escorrega, infiltra-se e vai cair no teto do vizinho. Que merda!
O administrador sabia que estava a ser repetitivo e inconsequente. Agora que começara a chover, não havia nada a afazer, nem era aconselhável andar em cima das telhas porque além de se poder escorregar, também se podia partir mais dois ou três telhas e depois é que eram “elas”. Enquanto fosse só uma, com uma fenda em diagonal, podia ser substituída sem problema de maior, uma vez que havia por lá, num canto qualquer do sótão, duas ou três telhas antigas, cheias de pó e lixo, que bastava limpar. Tinha adiado a sua substituição, porque o tempo estava limpo. Tinha começado o verão e quem é que ia adivinhar que agora – logo agora – iria chover? Uma maçada. Uma merda, não se cansava de repetir. Ele que até nem gostava de dizer asneiras.
O que o administrador gostava, mas gostava mesmo e lhe fazia sentir-se bem era chegar ao balcão do banco, depois de esperar a sua vez na fila, como qualquer outra pessoa e o funcionário trata-lo por: - Bom dia, senhor administrador, então o que o trás por cá hoje?
Senhor administrador. Era ele que administrava, contratava os fornecedores, negociava, mandava executar e emitia comunicados para os condóminos a dizer: mensalidade a pagamento, favor liquidar.
O filho da puta do rés-do-chão não queria pagar a limpeza das escadas nem do elevador argumentando que não utilizava. O carneiro do primeiro andar sempre a embirrar que a porta da rua fechava mal. Aquela vaca do segundo, que tinha fissuras na parede da varanda e que o estendal da roupa enferrujara…tudo e todos eram um mundo de preocupações.
Mas, o administrador defendia-se. Lera tudo sobre a matéria e colecionava a legislação que dizia que: primeiro: nada de flores nas escadas. Segundo: os cães ou outros animais só podem circular no espaço comum com trela. Terceiro: a lei do silêncio é para respeitar a partir de determinadas horas.
Ele tinha um chaveiro completo de todos os acessos que usava á cintura qual guarda prisional em exercício de funções. Mudava as lâmpadas fundidas e debitava, comprava os detergentes e debitava, procedia à contabilidade e debitava…lançando os créditos e as despesas. O saldo lá se ia mantendo ali pela zona do cinzento, nunca chegando para fazer obras, que o imóvel já estava a precisar.
E os seguros, e os esgotos e os conflitos entre as partes de cada um, e agora, ainda por cima e sem se fazer esperar mais esta história de ter começado a chover. Porra, já era de mais. Bem, pode ser que o condómino do ultimo andar não dê por nada, até lhe parece que ele não está. Terá, porventura, ido à terra, o administrador não sabe que não anda a controlar o sai e entra dos vizinhos.
Foi ao sótão e verificou que a humidade já escorria por ali. Tanto pior. Foi à cave e havia um tubo em pvc que apresentava bolores que deitavam um cheiro pestilento. Que diabo, o que é que estava a acontecer? O administrador não tinha sossego? Só faltava encontrar o cabrão do terceiro que lhe perguntaria se a caleira do prédio estava limpa, para evitar entupimentos.
A única gaja que merecia alguma atenção ao administrador, não refilava, nem protestava, nem ia às reuniões. Era a convencida do quarto andar, de mini saia,  boas pernas e mamas como os balões do s.joão. O administrador gostaria de ter um motivo para a interpelar sobre qualquer assunto, mas ela era enguia e escorregava com facilidade. Bom dia, boa tarde e nem um olhar mais demorado. Se tentava dizer alguma coisa em que matutara durante a semana, para quando a encontrasse, ela descartava-se com um “desculpe, estou atrasada, logo falamos, tem razão, obrigado” e desaparecia. Coisa de gaja, já se via. Mantinha os pagamentos sempre em dia e por isso, nem essa desculpa o administrador tinha para lhe dirigir a palavra.
E foi assim que o administrador recolheu ao seu cubículo, quase casa de porteira sorumbático e chateado. Ligou a televisão, começou a beber pela garrafa e quando o foram encontrar – dois meses depois – estava na mesma posição, refastelado no sofá com a porta entreaberta e o livro das actas na mão. Já cadáver, já se vê. Elas não matam, mas moem, e tanto moem que acabam por matar.
O senhor administrador foi a enterrar. A casa ficou para uma sobrinha e os condóminos viveram felizes e com saúde para sempre depois de terem feito obras no prédio. O imóvel, agora renovado, foi decorado com um pequeno azulejo à entrada: “fonte da telha” diz o desenho com ironia. Uma homenagem a um inquilino, também administrador que deixara guardado, em barras de ouro, duas telhas no sótão, que de tantos quilates concentrados valeram bom dinheiro, já que foram parte do testamento, também na ocasião encontrado no cofre do banco em nome do condomínio, que ninguém suspeitava existir.
Afinal, nem era mau aquele senhor, uma jóia de pessoa, afirmaram em concordância, um pobre diabo, disseram outros, um desgraçado. Há sempre invejas, já se sabe, mas todos aproveitaram a oferta e a herança e o azulejo com um cântaro em barro suscitou a curiosidade de muitos passantes – sim que estas coisas depressa se espalham e se tornam mito e história e “incrível!” aldrabice – Por tudo isto foi elaborado o presente relatório, que por todos os condóminos vai ser assinado.

E nada mais havendo a relatar, foi o assunto encerrado.

Carlos Arinto

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