O Assalto


Naquela tarde quente de agosto de mil oitocentos e qualquer coisa, três homens conversavam, por entre a frescura bem-vinda das árvores. Faziam um interessante trio. Com roupas que já conheceram melhores dias e socas de pau, espraiavam-se na pequena clareira, como que esperando que algo acontecesse.
— Pois é como te digo, Xico. — Dizia o das fartas suíças, sentado num tronco de árvore, enquanto acariciava uma bela pistola ornamentada. — Desta vez não há que enganar! Se algum se armar em galaró, amando-lhe um chumbo entre os olhos, que há de logo ir dar com os cornos aos pés do mafarrico.
O mais novo dos três, com largas melenas encaracoladas, a escapar-se do chapéu puído, benzeu-se apressadamente.
— Ora, tem juízo, Zé. — O terceiro, um tronco de barrica, barba farta e pele morena, rematou. — Aposto que nem sabes usar esse farragatcho. Estoura-se-te o bacamarte na mão e quem vai desta p’ra melhor és tu!
— Quê? — O outro ergueu-se de um salto, sacudindo a arma no ar. — Nem tu imaginas as bujardas que já mandei com esta daqui!
— Ensina-me a atirar com o bacamarte, Zé! — Pediu o mais novo.
— Isto não é um bacamarte, Tone, sua cavalgadura! — Exclamou o visado, com ar de entendido. — Isto é uma pistola! E uma pistola de fidalgo, por sinal.
— E atão onde arranjaste essa fidalguia? — Quis saber o Xico.
— Não te alembras da “visita” à casa do juiz Sarmento?
— Bô! — O outro não queria acreditar. — Pois astreveste-te a pôr as unhas na pistola do velho baboso? E não disseste nada?
— Ora pois, aqui, como a vês!
— Deixa-me atirar, Zé! — Tone insistiu.
— Quieto! Isto não é brinquedo, Tone, ainda matas alguém! Deixa-te por aí com o varapau e a faca, que é onde és mais artista!
— Pois a merda do juiz pouco lá tinha que se aproveitasse. Uns cobres descuidados e umas pratas... aposto que o fideputa ainda tem os dobrões enterrados por lá.
— Não te podes queixar muito. — Continuou Zé. — Lembras-te do presuntinho que mamamos na taberna do Julião à custa do que conseguimos lá?
— Atão não? E aquele tinto de estalo? — Xico concordou.
— Dispara tu, então, Zé! Deixa-me ouvir! — Tone insistia indiferente às lembranças gastronómicas.
— Deixa-o, Tone! — Riu-se Xico. — Tenho cá a ideia, que esse patranhas, nem sabe usar a geringonça.
— Dizes tu, ò zangão! — Zé enervou-se pela utilização da sua alcunha e ofendeu o outro com a dele. Mas começou a explicação aos dois, que, entretanto, se aproximaram... — Isto é só carregar a póvora e a bala e já está! Ósdepois puxa-se aqui o fecho e está pronta a...
Um potente estampido produzido pela arma deixou todos sem fala enquanto o chapéu de palha do Xico voava e o seu rosto ficava coberto de fuligem.
— Ah! Excomungado dos demónios! — Gritou o Xico Zangão erguendo o varapau. — Por um cibo não me arrebentavas com os cornos, filho de um cabrão!
— Foi sem querer, desculpa! — Gritou o patranhas fugindo para trás de umas pedras próximas.
— Deixa-o! — Pediu Tone colocando-se no caminho do ofendido. — Não vês que foi sem querer? 
— Se tornas a chegar-te a mim com esse estadulho dos infernos, racho-te à barduada! Seu patranhas desmiolado!
— Pronto! Desculpa, já disse, fugiu-me o fecho dos dedos. — Desculpou-se Zé.
Amuado, Xico sentou-se numa pedra a resmungar sozinho. Não era sem motivo, que era conhecido por zangão; as suas fúrias repentinas e o ar de poucos amigos, punham qualquer um em respeito. A aldeia raiana de onde provinham, era fértil em rebatizar os seus habitantes e Zé, por seu lado, era o patranhas, sempre a exagerar as histórias em que se envolvia e os resultados delas, que a maior parte das vezes lhe eram desfavoráveis. Já o Tone, irmão de Xico, era o canhoto, ou o russo. Poucos gostavam das alcunhas que lhes davam, mas todos colaboravam nos batismos populares que, à falta de outra coisa, podiam servir como insulto ou pura diversão.
Mantendo um olho na arma e o outro a vigiar o Xico, Zé recarregou a pistola com pólvora e colocou a esfera metálica que pressionou para o fundo do cano, várias vezes, com a vareta. Em seguida, testou o fecho de pederneira, várias vezes, para se certificar que não se repetia o acidente. Tone falava baixo com o irmão que não parava de resmungar.
O relincho próximo de um cavalo, deixou os três de ouvido apurado. Breve se começaram a escutar vozes masculinas que conversavam calmamente.
— Estão aí! — Sussurrou Zé, correndo para junto dos outros.
Ato contínuo, Tone, em vários saltos, deslocou-se sobre as pedras para o maciço de árvores que os separava da estrada e pôs-se a espreitar.
— Já lá vêm! — Sussurrou.
— Quantos são? — Quis saber Xico.
— Dois na carroça e um a cavalo. O cavaleiro deve ser gente fina, belo chapéu, boas botas...
— Merda! Deve ser coisa fina, mesmo. Para trazer um guarda...  — Reconheceu Zé. — Hoje vamo-nos consolar outra vez na taberna… ai o presuntinho…
— O badocha não te disse o que traziam? — Xico ficou desconfiado.
— Não. Disse que levavam coisa fina para o solar dos Resendes.
— Oh! Raios me partam, que caio sempre nas tuas patranhas.
— Bô! Mas que queres tu? Não encheste os bolsos com o outro mercador de Penafiel? E o peleiro de Amarante? Não vinha cheio de moedas? O badocha não se costuma enganar!
— Pouca ladradeira aí! — Sussurrou Tone. — Tão quase a chegar! Apresta-te lá prà frente deles, Zé, já que tens o bacamarte.
— Pistola, asno! — Ralhou-lhe o visado enquanto corria para emboscar a carroça.
Na estrada, se se pode chamar assim ao caminho de terra batida que ziguezagueava por entre as árvores, os dois carroceiros conversavam despreocupadamente. O cavaleiro que os seguia parecia dormitar em cima da sela. A caixa da carroça vinha ocupada com seis arcas de madeira, cobertas com uma enorme sarapilheira suja.
Com a cara tapada por um colorido lenço e a pistola apontada aos viajantes, o patranhas caminhou calmamente da berma para o meio da estrada, até que o vissem.
— Alto lá! — Ordenou.
— Que é isto? — Indignou-se o condutor da carroça.
— Isto é um negócio a não perder, amigos forasteiros, — Brincou Zé. — Vocês deixam a carroça e os cavalos e eu deixo-vos ir embora vivos.
O cavaleiro preparou-se para esporear o cavalo, mas, ao nível do rosto, surgiu-lhe a ponta do varapau de Xico que avisou:
— Quietinho aí ò echelência! Não queremos amassar esse bonito chapéu, pois não?
— Que querem vocês, escumalha da estrada? — A voz carregada de desprezo, fez-se ouvir, enquanto mirava o salteador maltrapilho, que o ameaçava, de cara tapada.
— Não vos disse já o meu amigo ao que vínhamos? — Tone saltou para a carroça, com um varapau numa mão e uma faca com doze centímetros de lâmina na outra. — Queremos o que tão bem guardais!
— Pois sabes tu quem queres roubar? — Perguntou o carroceiro voltando-se para o salteador nas suas costas. — Esta encomenda é para o casamento da filha do senhor da casa do Pinheiro!
— E a filha também aqui vem? Se viesse talvez se lhe arranjasse serventia! — Riu Tone.
— Pelo menos durante algum tempo! — Apoiou Zé soltando uma gargalhada.
— Escumalha! — Sem dar tempo a Xico reagir, o cavaleiro puxou de uma pistola que apontou para Zé. O visado, que tinha a sua própria arma apontada para o ar, baixou rapidamente a pistola para disparar. A esfera de chumbo caiu do cano, para espanto de todos.
Quem salva a situação é Xico. Desfechou uma violenta pancada na arma do cavaleiro fazendo-a disparar-se inadvertidamente junto à orelha da montada. Assustado, o animal empinou-se, derrubando o cavaleiro em cima do assaltante e desatando num galope desenfreado. Zé conseguiu atirar-se para o lado no último momento e salvar-se de ser pisoteado. O carroceiro controlou o outro cavalo com dificuldade, enquanto Tone ameaçava o pendura com a faca:
— Quieto aí, ò artajeiro! Não te astrevas a mexer!
A força descomunal de Xico foi suficiente para, com um empurrão e um soco, levar a melhor sobre o cavaleiro apeado e ameaçá-lo com a sua faca:
— Quieto já! Ou queres ir visitar o barzabu? — Sem tirar os olhos do homem, gritou para Zé. — Que os diabos te encham de pulgas, trampolineiro de um raio! Não te disse que esse bassouro só ia arranjar bosta? 
— Caiu a porcaria da bala! Que queres que te faça? Era pequena! — Desculpou-se ele.
— Vocês são uns pantomineiros! — Acabou por rir-se o cavaleiro. — O circo está montado!
Xico socou o homem com força num braço:
— Estás a pedi-las! Vamos levar as coisas e deixar-vos aqui, vê lá se queres que te deixe uma perna partida.
— Deixem-se de refustedo! — Gritou Tone. — Amarra esse fideputa, e tu, Zé, anda aqui ajudar a amarrar estes! Deixa a excomungada da bala, não procures mais!
Rapidamente, os três homens foram sentados de costas uns para os outros e amarrados todos juntos. Os apavorados carroceiros mantinham as cabeças baixas, mas o cavaleiro continuava desaforado e olhava furiosamente os assaltantes.
— Que foi? — Xico deu-lhe um pontapé num braço. — Queres comer-me é? Tens muito que crescer, ò fininho!
— Ainda hei de descobrir quem são vocês! Arranjarei com que vão dar com o lombo no calabouço, seus facínoras!
— Isso querias tu, fidalgote! — Agora era Zé apontava a pistola ao nariz do provocador. — Olha que já está carregada!
— Onde arranjaste uma arma decorada a prata, pelintra? — O homem não se intimidava.
Os três assaltantes olharam-se antes de observarem a arma com mais atenção.
— Não sabiam! — O cavaleiro soltou uma gargalhada. — Vocês são os ladrões da mais triste figura que já vi!
— Vamos embora daqui antes que eu arrebente os cornos a este artajeiro. — Disse Xico.
Saltaram os três para a carroça e começaram a deslocar-se rindo-se e acenando adeus ao infortunados assaltados. O cavaleiro ficou a insultá-los e a amaldiçoá-los em altos berros.
Depois de uma viagem de mais de uma hora, em que Xico não parou de insultar e humilhar um amuado Zé, pararam afastados da estrada, junto de uma descida para o rio.
Atiraram-se às arcas e rebentaram os fechos para verem o valor da presa; a primeira, estava cheia de pratos da mais fina porcelana, pintados à mão. Tone ficou-se de boca aberta a olhar para os outros exibindo uma das coloridas peças de loiça.
Furiosos, abriram todas as arcas. Mais pratos e copos de cristal. Não havia dúvidas que tinham entre mãos a loiças destinadas ao casamento da filha do senhor da casa do Pinheiro.
— Por todos os demónios dos infernos!!!!! — Gritou Xico numa fúria, dando murros e quase desfazendo as tampas das arcas. — Só roubamos cacos!!!! Que cabra de sorte!!!
— Quando eu puser as mãos no moncoso do badocha, vou fazê-lo em pedaços!!! — Exclamou Zé, ultrajado.
— Eu havia de te arrebentar as fuças a ti, seu patranhas do inferno! Tu é que nos meteste nesta porcaria! Porque é que me deixo sempre levar por ti? — Xico ergueu Zé pelos colarinhos enquanto encostava nariz com nariz.
— Esperem, esperem! — Tone sorria. — Sei de um galego em Chaves que dará bom dinheiro por isto, os pais dele têm uma tenda na Espanha e vendem esta bosta toda lá. Às tantas, ainda compra o cavalo e a carroça também. Estamos safos!
Xico atirou com Zé para o chão da carroça:
— Pode ser que não seja por hora que mando este infeliz para o inferno! Vamos ver também se não quer comprar uma pistola decorada a prata! 
Cabisbaixo, Zé ergueu-se, apanhou a adorada pistola do soalho da carroça e meteu-a na cinta. Prendeu-a pela corda que lhe segurava as calças puídas.
— Vamos embora então. — Disse Tone enquanto se sentava no lugar de condutor da carroça. — Temos de chegar ainda com dia.
Zé encaminhou-se para o lugar do pendura e estava a sentar-se quando Xico o empurrou para fora:
— Espera lá! Agora vou eu aí!
Desequilibrado, ele saltou da boleia para junto das patas traseiras do cavalo. A pistola caiu-lhe da cinta e bateu com força numa pedra. O disparo ecoou como uma bomba no silêncio do vale e o animal espantou-se com o súbito ruído. Com um potente coice na carroça, fez cair os dois bandidos e partiu à desfilada, levando a carga aos saltos pelo caminho pedregoso. Logo na primeira curva, o veículo voltou-se e despedaçou-se num estrondo de cacos e vidros. Sentindo-se solto, o cavalo aumentou o galope e desapareceu de vista.
Os três infelizes quedaram-se incrédulos a assistir ao epílogo da sua aventura, até que Zé, olhando para os outros dois, desatou a correr na direção contrária à tomada pelo animal.
— Espera aí, seu manhuço! Filho de um coirão! — Xico começou a correr atrás dele. — Não fujas, vou-te dar uma saronda que te racho, cochino, labrego! Espera que já as vais larpar, seu gandulo! Não fujas!
Desanimado, Tone quedou-se a olhar a nuvem de poeira deixada pelo cavalo em fuga e para os restos despedaçados da carroça. Depois olhou para o outro lado, onde o seu irmão perseguia o patranhas, aos gritos. Baixou-se, apanhou a pistola e prendeu-a na cinta. 
“Pelo menos a prata deverá valer alguma coisa, porque como bacamarte, é uma desgraça.” — Pensou enquanto se metia ao caminho, atrás dos outros dois. — “Talvez consigamos chegar a casa ainda antes da meia noite… mas desta vez não pomos os dentes no presunto da taberna do Julião.”

Manuel Amaro Mendonça

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