Recensão, resseção


(costuma-se editar o inicio e depois esconder o fim. aqui faço exactamente o contrário, edito o fim e não publico o inicio - que constará de um livro de contos a tornar livro brevemente)

Tinha ficado de fazer qualquer coisa, hoje, mas não se lembrava do quê.
Tinha ido ao médico e estava bem de saúde. Assistira a duas reuniões do BNI para publicitar a sua veia artística, mas desistira, não tinha veia artística, nem os empreendedores das start ups que lá pululavam eram interessantes. E, queriam que ela pagasse uma fortuna, para fazer parte de uma organização que não tinha sucesso comercial, para além de fazer os seus associados levantarem-se às seis da manhã, para assistir a reuniões intermináveis sobre como comer salmão fumado e debicar bolinhos sem sal acompanhados de um chá verde sem sabor.
Não, aquilo não era feito à sua medida.
- Experimenta o turismo religioso. Pode ser que descubras a tua vocação. Foi conselho de inimigo, pois Maria Fernanda nunca tivera fé, nem acreditava, nem era dada a conspirações místicas. Apetecia-lhe desistir de tudo. Abandonar-se a não fazer nada, pois nada lhe despertava interesse e curiosidade. Maria Fernanda deixou de frequentar o “tal grupo de amigas” de que se falou anteriormente. Começou a escrever um diário, mas não teve seguimento de página cheia, por ausência de assunto. Ficou a ver televisão, mudando de canal até se cansar e deixou de atender os telefonemas. Foi lavar a cabeça, pela segunda vez hoje.
Era a demência completa. O aproximar da senilidade. O envelhecer prematuro. O alzheimer que chegava galopando “onde é que deixei a carteira?”...”onde raio pus o secador do cabelo?”
Vinha aqui para fazer alguma coisa, mas entre a cozinha e casa de banho esqueci-me do que vinha fazer. Uma catástrofe. Uma desgraça.
E como uma desgraça nunca vem só tocaram à campainha. Era um senhor que dizia que era o marido, de quem nunca se havia divorciado. Maria Fernanda fechou-lhe a porta na cara. O homem tinha mais cara de carteiro do que de ex-marido pródigo e retornado. Que deixasse a mensagem por debaixo da porta. “Tenho de aturar cada um!” …sentou-se com as pernas traçadas debaixo do rabo, os pés em forquilha,  em cima de um cobertor virada para a parede.
Meditação. Precisava de meditar, de estar em sossego e de paz.
Estava assim, quando os paramédicos a vieram buscar, depois dos bombeiros terem arrombado a porta. A polícia verificou a conformidade da ocorrência, foi elaborado um auto e seguiram todos para o hospital. Havia uma barata no chão, que parecia um robot, um pequeno drone metálico, mas uma vez esmagado com o pé da autoridade, revelou-se ser apenas um conjunto de asas e pernas, com um núcleo linfático aquoso, de cor amarelada, que deixou uma mancha no chão, como qualquer bicho que é pisado.
Quando optara por se imolar, pelo silêncio e pela ausência, Maria Fernanda tinha pendurado a alma no canto mais escuro do guarda-vestidos. Ninguém se lembrou de procurar aí vestígios da sua essência. Ainda permanece naquela habitação, mesmo depois das obras de remodelação que o filho mandou executar no imóvel. O móvel, embutido na parede sobreviveu, com uma limpeza efectuada à base de óleo de cedro escuro, era e è, mais um closet do que um guarda-fatos e por isso resistiu.
Tudo o resto foi deitado no lixo, e a casa vendida. Quanto ao corpo de Maria Fernanda extraviou-se entre o hospital, o centro de saúde, o lar, o centro de dia, a sede dos sem abrigo, o depósito do banco alimentar e a paróquia de São Cristóvão. Nunca ninguém encontrou o corpo que alguns diziam ter estado ali ou levado para outro lado, que negava que alguma vez lá tivesse dado entrada alguém com esse nome. A segurança social cancelou os pagamentos. Foi aberto um inquérito, mas como sempre acontece…não se chegou a conclusão nenhuma. Nunca houve funeral.

Se se escrevem estas memórias é porque eu ainda me lembro dela. Não estou balhelhas. Foi assim como estou a contar. Acreditem se quiserem. Aos cinco dias do mês de Maio do ano da desgraça do Senhor. Segue-se a assinatura com reconhecimento notarial e tudo.

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