a reunião
O encontro teve lugar a 17 de Dezembro. Um dia frio e a proximidade do
natal fez com que muitos não comparecessem em resposta à convocatória. Se
tivesse sido noutra ocasião, haveria outras desculpas, mas assim, e porque o
tempo é de intimidade e agasalho, serviu para colar à ausência as razões
constantes do manual: o frio, a família, o reumático uma visita, já antes,
programada e até a vontade de não estar presente porque…”não me apetece, fico
em casa a escrever”.
Vejam bem o desaforo. Escritores que se preocupam com a escrita. Que
escrevem.
Um escritor tem obrigações e responsabilidades. Um escritor é tão
corporativo como qualquer outra classe profissional, mesmo que – e neste caso,
aplica-se bem – não viva dos rendimentos gerados pela sua actividade. É como se
um médico vivesse dos rendimentos deixados por uma herança. Como se o
engenheiro se alimentasse na vida, pelas rendas dos prédios que não construiu,
mas que uma tia rica lhe doou.
Um actor, cantor ou técnico informático obtem rendimentos da compra e
venda de bitcoins e de acções que em bolsa estão sempre em valorização, geridas
por um broken de que nem se sabe o nome. Como começaram as suas fortunas, não
interessa, como é que juntaram capitais capazes de acumular fortunas, isso não
interessa, como é que chegaram aqui, ao paraíso, é mistério que nem as revistas
de segredos e os jornais de escândalos revelam.
Os escritores, são profissionais sem profissão.
Ninguém vive do que faz, existem sempre outras coisas, quaisquer, que
são notas e moedas que pagam a renda da casa, o automóvel e a alimentação, além
da roupa, das viagens e dos copos sexta-feira à noite. Mesmo quando essas
“notas e moedas” são meros algoritmos virtuais inscritos no ecrã de um telemóvel.
Alguém paga as estravagâncias e os desmandos, as dívidas e os vícios. Sim,
porque, escritores ou não escritores, são pessoas.
Cardeais, diplomatas, bancários, professores, juízes, jornalistas…um
escritor é alguém que espreita pelos buracos da sua profissão para o livro, que
usa a sua profissão como esponja que absorve o enredo e núcleo da sua história,
que depois despeja na paginação da sua veia literária. Muitos em idade de
reforma, outros que para lá caminham. Muitos pesquisam em bibliotecas e
arquivos o que desconhecem e compram a “colaboradores” a substancia cientifica
dos enredos, porque têm mais que fazer, são geralmente apresentadores de
televisão e políticos em travessia de deserto.
Portanto, os escritores, que não são mais nem menos do que todos os
outros, e que aqui se apresentam, reúnem e discordam em discutir os problemas
da classe, apresentando as suas reivindicações e exigências, pedindo estatuto e
solidariedade. Neste parlamento de homens da escrita surgiram neste ano os
“influenciadores” – vá-se lá saber o que isso possa ser, mas damos um exemplo
para melhor esclarecer: são “escritores” que escrevem opiniões, ilustram com
imagens o que escrevem, fazem comparações e dão bitaites, pedindo que o caudal
de seguidores e fans engrosse com a aposição de “gostos” e comentários
fofinhos. Estamos a falar de redes sociais, como já devem ter percebido.
Estes escritores, que surgiram de uma tendência que se vinha
desenhando desde algum tempo com os “ghost writters” é tão literata como
qualquer facilitador que se movimenta nos corredores do poder, nos bastidores
da banca ou nos meandros dos enxames de assessores e consultores que circulam
junto da luz legislativa, executiva ou judicial.
São escritores-não-escritores a exemplo do tnt que é tecido-não-tecido
mas faz as funções tão bem ou melhor do que o original.
Temos, portanto, que neste congresso – chamemos-lhe assim – estavam
todos os que sabem usar a caneta, o lápis, o teclado e a imaginação para
comunicar e criar qualquer coisa simpática que alguém sem estes predicados,
precisa de consultar, ler, manusear, passar os olhos ou até divertir-se e
saborear em tempo de descontracção ou para uso adequado a situações que se
configuram, todos os dias, na nossa conflituosidade.
São os seguidores, os fans e os coisa e tal. Os que gostam de
autógrafos.
Aqui que ninguém nos pode ouvir, porque não há camaras de vigilância nem
microfones escondidos também por lá passearam dois ou três agentes do “lápis
azul” disfarçados de comentadores, escritores de crónicas e memorabilistas com curriculum, que igualmente
usam o lápis e a caneta, bem como a tecla “delete”.
Numa sala ao lado estavam reunidas as agências de comunicação e grupos
de homens e mulheres da escrita, que auferiam de um pré em agências de
publicidade (catapulta para a fama e a sobrevivência) que já antes haviam dado
emprego a muitos. Alexandre O. Neil ou Ary dos Santos são exemplos.
Um ajuntamento de “escritores” é uma coisa séria. Ao longo do ano
acontecem vários em todo o país. Normalmente elogiam-se uns aos outros e ficam
por aí. Comem bem, bebem melhor e alguém paga as despesas. As associações do
sector, devidamente credibilizadas por anos de defesa dos profissionais da
arte, esqueceram velhas rivalidades e juntaram-se para – agregando mais sócios
– formar um grande movimento. Todos os que giravam à volta da escrita se
congregaram: revisores, gráficos, designers paginadores, tipógrafos,
matemáticos e pessoal das estatísticas, além dos críticos, dos editores e
membros dos júris.
Todos numa terceira sala ao lado. No fundo o banquete de despedida
haveria de os unir tendo sido assinado diversos contratos de colaboração. As
razões da separação era muito “web summit” motivos de distanciamento social
adequado e tamanho das salas.
Nos dois dias da reunião, ficou decidido que se iria escrever, neste
novo ano, que em breve começaria, sobre…coisa nenhuma e sobre todas as coisas.
Tudo seria objectivo e contundente. Seria
feito um esforço para transformar a arte da escrita numa cruzada contra a
ignorância e contra o medo e a estupidez. As questões sociais e os problemas da
sociedade passariam a interessar e o que
valia era ser utópico. Tergiversar,
procastrinar com qualidade seria aceite desde que executado com engenho e
fluência narrativa que eruptasse o mundo
da escrita para patamares nunca alcançados. Criar um universo artístico novo e puro, actuante e proactivo
que denunciasse as malformações e as inércias. Essa era a finalidade da literatura. Ser
essência, ser novo e marcar a fogo os tempos que se viviam. Revitalizar,
requalificar na linguagem de alguns grupos comprometidos politicamente com
tendências eruptivas.
O ministério da cultura garantia um apoio generoso. Era preciso
“salvar a pele” e mostrar que um sector tão vasto e diversificado, que
dinamizava tanta gente e agora se unia, tinha reconhecimento. O panfleto viria
depois quando houvesse eleições.
E foi assim, que….nesse ano a literatura ficou vermelha e como um
caleidoscópio falou de bebedeiras, de estados psicóticos, de islâmicos que
tomam o poder, de refugiados que não são refugiados, da vida nas mesquitas, do
que se passava na Coreia do Norte, do mercado de Whuam, na China e de como
enfrentar as pandemias, em tempos de confinamentos.
É que, fosse romance com mais ou menos cordel, literatura histórica,
crónica de viagens, reflexão de autoajuda e conforto espiritual ou policial,
livro de espionagem ou ficção cientifica sobre o futuro da humanidade, todos
haviam optado por obedecer às orientações emanadas do congresso, consideradas
adequadas aos tempos que se viviam. Até os autores mais ou menos da cor das
rosas baixaram as armas do piroso e escreveram umas tretas a denunciar amores e
desamores sem finais felizes, tendo encetado até incursões por areópagos
eróticos e sensuais de sexo alternativo. Os leitores aderiram e o sucesso foi
retumbante.
Violência doméstica e racismo estiveram na ordem do dia e as questões
ecológicas e de vida saudável foram também tratadas pelos artificies da
palavra, da frase e do parágrafo.
Alguns proletários que sobreviviam em pleno século XXI ainda tentaram
boicotar uma biografia de Woody Allen, ensaios e relatos de corrupção na
construção de barragens, na falência de instituições financeiras, mas foram
submersos por campanhas de publicidade que afirmavam que os autores” estavam
vivos e tinham voz e não se calariam. Era tudo verdade, dizia o “poligrafo”. O
encontro dos escritores apanhara toda a gente de surpresa. Podiam agora “vender
o seu peixe” à vontade tinham a imunidade do compromisso de só escreverem
literatura real e conceptualista sob a forma de oráculo, pitonisa ou retratistas…
e tudo que era dito, escrito e contado e se passava – aqui, no mundo real em
que se vive – planeta imaginado que se
chamava “abstração da coisa concreta” foi êxito e luz.
Foi decretado que o leitor deverá usar máscara para aceder à leitura. Esta,
a leitura, pode contaminar. Proteja-se!
Os livros passaram a ser objetos de culto, guardados, protegidos e
escondidos dos olhares dos curiosos. Os livros tinham uma função terapêutica e
preventiva de possíveis alienações. Por favor: use a literatura com moderação o
seu consumo em excesso pode conduzi-lo a situações perigosas sem retorno.
Posições e pensamentos para os quais ainda não há vacina, nem tratamento e –
embora nos custe admiti-lo – a única forma de extirpar os males da sociedade
demasiado dada à leitura é abater os viciados e os infetados com sintomas
terminais. Ou fechá-los em celas sem luz – elemento essencial para se proceder
à leitura – e deitar fora a chave, alegando que o procurado está desaparecido e
que todos os meios estão a ser usados para a sua procura.
Um leitor menos precavido ou inocente pode tornar-se perigoso e querer
repetir na vida real o que lê nos livros. Apaixonar-se, por exemplo! Ou
acreditar no além e começar a falar com os mortos. Revoltar-se e ter opinião
própria, meu Deus, que todos os anjos e santos nos protejam.
Desta situação não restou memória. Não há nenhuma passagem histórica,
descrita por estudioso credível que a mencione. Foi num ano bissexto, que nem
os calendários registam, embora haja estudiosos destas coisas do tempo que
afirmam que falta ali qualquer coisa quando se olha para trás e se faz a
história da humanidade.
Se aqui trazemos esta lenda é porque alguém encontrou, numa falsa parede oca, em uma casa de
construção antiga perdida na serra, um livro com a acta da reunião. Acredita-se
que ali tenha vivido o oficial que dirigiu a reunião dos escritores, cujo nome
– contudo – não é pronunciado.
Carlos Arinto
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