A esplanada



Era cedo e o movimento na esplanada reduzido. Bebi o café e dei “uma passagem” pelos títulos do jornal, que não diziam mais do que é costume. À esquerda um senhor de alguma idade, vestindo uma t-shirt sem mangas bebia uma cerveja. Em frente, no passeio, uma jovem com um cão pela trela entabulava negociações com um jovem, que  igualmente puxava um cão, sobre a forma como estes se cumprimentavam com latidos estridentes e esticões nos respetivos cordões umbilicais de propriedade.
Era portanto um clima edílico e perfeito, próprio de um dia igual a tantos outros, que se iniciava aborrecido e sereno.
Saudei um velhote – que deve ser mais novo do que eu, mas que usando os meus privilégios de autor, sou o rapaz e ele o velhote – com uma graçola qualquer e preparava-me para rodar o botão da indiferença, ficando ali a olhar para a rua, sem ver, quando…
Uma senhora, já de respeitável idade, usando uma vestimenta que lhe assentava bem, cara enrugada e corpo fino, movendo-se com ligeireza se aproximou da minha mesa e perguntou.
- Quanto custa um “garoto” aqui, sabe?
Um “garoto” é um café com leite, em chávena pequena para os que possam não saber o que isso é. “Toda a gente sabe isto”, mas prevendo a tradução deste meu conto para russo ou lituano, acho melhor explicar já do que se trata, pois assim facilita-se a compreensão do leitor.
A tal senhora, surgiu pelas costas, sem espalhafato, como surgem todos os que por ali vão aparecendo e na forma sem hesitação da pergunta que me dirigiu mostrava não ser acanhada, nem tímida.
- Bem, o café são cinquenta cêntimos, o “garoto”, não sei, mas pergunte “lá dentro”.
E ela, a cliente em potência assim fez dirigindo-se ao interior do estabelecimento. Pouco depois regressou informando-me de que o preço era igual ao do café, e escolhendo mesa para se sentar.
Trazia mala e mais qualquer coisa que não reparei em que fosse que poisou na cadeira ao lado. Depois veio a empregada trazer-lhe a bebida e, quando me fui embora, ao pagar a minha despesa, acrescentei a daquela senhora.
Como aprendi no meu curso de agente dos serviços secretos, fui-me embora, mas deixei um espião a registar o evoluir dos acontecimentos na esplanada. É um hábito antigo, não estar ali e estar ali, colecionando as pistas que um dia me hão-de conduzir à prova dos muitos crimes que ali ( e em todo o lado) são engendrados, se não mesmo cometidos.
Todas as esplanadas são locais de encontros e de literatura, para além de cenários de espionagem, acordos secretos entre litigantes, escritório de compra e venda de produtos anunciados nas redes sociais, amores ou desamores, alguns mais pró putedo do que outros, todos com a característica fodilhão que se reconhece ao macho latino e à fêmea de que não se escolhe origem, raça ou nacionalidade.
A senhora parecia-me estrangeira, observei pelo canto do olho. Mas não era estrangeira, conclui pelo canto do outro olho. Bebeu o seu “garoto” com elegância e numa agitação de quem tem mais que fazer, pediu a conta. O seu português e sotaque eram perfeitos e as vestes comuns. A cara, talvez, um pouco pálida e decolorada, mas o sol não torra todos por igual.
- Já está pago, disse-lhe a empregada.
Mostrou a admiração que era expectável que mostrasse. Então pediu à empregada que lhe embrulhasse dois “salgados” e lhe trouxesse um maço de tabaco. O que esta assim fez, com a rapidez de um serviço de muitas estrelas e o desenrascanço de quem tem mais clientes para aviar, que, entretanto, começavam a chegar aos magotes.
Embora não fosse usual ser o empregado a trazer tabaco à mesa, pois havia máquina automática de fornecer os maços de cigarros aos clientes e essa incumbência não fosse da sua atribuição, que empregado não é criado, despachou o serviço com o mesmo gosto e expediente com que aviava torradas, galões e bolas de Berlim aos outros fregueses.
Sim senhor. Uma excelente técnica superior de atendimento personalizado ao serviço da esplanada e das mesas do interior, que – mais logo – seria igualmente restaurante.
A tal senhora, agora cliente, pagou e manteve-se sentada na mesa que escolhera ao canto, debaixo do chapéu-de-sol, que lhe sombreava a cabeça e o corpo delgado. Chamava a atenção a cor da sua saia de um amarelo que refulgia, comprida até aos tornozelos, que deixava ver uns botins e umas meias brancas até aos calcanhares.
Se me é permitida a apreciação tinha um ar “espantado”, como alguém que não fosse dali e estivesse a observar tudo em redor, com um certo espalhafato de gestos e de distribuição de objectos pelas cadeiras em volta – aqui a mala, ali o tal embrulho, parecia-me, depois o casaco leve, mas que afogueava…poisou igualmente o chapéu na mesa. Não, não se ia despir, se é isso que estão a pensar, estava apenas a distribuir objectos e a equilibrar o espaço em volta com a distribuição de pesos e ocupação de lugares vagos.
O dia passou com a normalidade de quem não se detém e quando pelas cinco horas da tarde, por ali voltei a passar, viciado em tomar um outro café´, constactei que a senhora ainda por ali estava, agora na companhia de outras pessoas. Estranho, muito estranho. Não tinha visto nenhum disco voador ter despejado seres de outro planeta naquele café e mais especificamente naquela esplanada, (bem, nunca tinha visto ali, nem em lado nenhuma diga-se em abono da verdade) mas era uma realidade, as mesas – todas as mesas -  estavam cheias com mulheres, todas vestidas de igual, como uma equipa de futebol, todas com saia até aos pés, camisola leve de tons claros e um chapéu na cabeça com uma pluma discreta em azul.
Tinham todas a mesma idade ou pelo menos uma idade semelhante. Seria uma excursão geriátrica de um lar de idosos?
Tive de tomar a minha “bica” no interior do estabelecimento. Devia haver lugares reservados para os clientes habituais, pensei.
- Vanessa, como é que é, já não sou bem-vindo?
Perguntei à minha funcionária preferida que entrava e saia, fazendo trocos e mandando o outros funcionários mexerem-se em vez de empatarem e atrasarem o serviço com a sua lentidão de animais preguiçosos e enfastiados com os pedidos dos clientes e as exigências absurdas (na opinião deles) dos clientes.
A mesa está suja, um pano por favor. Esta colher não foi bem lavada, anda aqui uma mosca que não me larga, veja lá o que pode fazer, traga-me um copo com água, para mim a chávena é escaldada…. Rotina.
Preparei-me para sair antes da resposta da minha querida Vanessa. Tomei balanço e atirei-me, porta fora em direcção á rua. O enxame lá estava ocupando todas as células da colmeia. Não deram pela minha intrusão.
Ao outro dia, contaram-me que tiveram que encostar as senhoras à parede e deixá-las ficar ali, junto com as cadeiras e as mesas, quando encavalitaram a esplanada para libertar o espaço de circulação dos peões. Sim, uma esplanada é distribuída pela rua, em cima do local, normalmente reservado aos peões, diminuindo este espaço para corredores mínimos, cada vez que uma mesa é arrastada para fora do seu lugar habitual e colocada mais próxima ou afastada de outra. Algumas esplanadas optam por pregar as mesas e as cadeiras ao chão, através de cadeados arpoadores,  mas esta esplanada, onde nos encontramos não é assim: as mesas rodam em entropia de acordo com a rotação da luz do sol.
Pode ser que durante a noite regressem aos seus habitats, já que no dia seguinte o estabelecimento estaria encerrado, para descanso do pessoal, que bem merecia. Todo o consumo estava pago, não havia beatas de cigarros no chão e até os papeis e plásticos que costumavam voar por ali, saracoteados pelo vento, estavam dentro das papeleiras que existiam num poste em frente.

Ainda bem que o dia de ontem já passou. Ele há cada coisa, cada uma, cada situação…Foi um prenúncio, agora só tenho que descobrir de quê? A pesquisa e a procura continua. Se eu fosse um contador de histórias grafitadas em pagelas, diria…”não percam o próximo episódio, o próximo capitulo..” um argumentista de novela de hora nobre…”será que?..não deixe de assistir e veja com aqueles que a terra há-de comer…” e o blá, blá do costume.
Na minha qualidade de simples narrador não acrescento mais nada. Tirem as conclusões que quiserem e se não chegarem a conclusão nenhuma…azar. Está distribuído o prejuízo. Mas que foi real, foi! Que aconteceu, aconteceu! Que é anunciação ou prenuncio, não tenham duvidas. Que o conto acaba aqui. Acabou!

Carlos Arinto

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