A morte das abelhas



Presente ao Juiz, foi-lhe aplicada a medida de “identidade e residência”.
Mas, como? Ele estava inocente.
Se todos estavam “confinados” em casa, como é que ele ia cumprir uma pena que já estava a cumprir? Mais, se ele estava #sem sair de casa# como é que ele tinha podido assassinar a abelha que diziam ter morto?
Era evidente, e só por absurdo se compreendia que tinha havido intrusão e que o bandido era deixado á solta, enquanto um inocente era culpado..
#Eu fico em casa#, logo respeito as regras, logo sou um cidadão exemplar, logo não sou um assassino, logo não posso ser condenado. Trata-se de um grave erro judiciário e judicial.
Sim, era verdade que a janela estava aberta, mas isso não significa um convite a entrar. Estava a desinfetar o parapeito da janela e a limpar os vidros, senhora juíza.
Quando dei por isso a abelha estava ali. Pensei que fosse um drone e defendi-me.
- Não tinha nada que pensar. Respondeu a acusadora do ministério público.
- Senhora Juíza, o meu cliente é uma pessoa sem cadastro, se diz que não matou por querer, e em “dúvida pró réu” tem de ser absolvido. Agora somos todos seres humano e até as abelhas, têm de respeitar a lei, e não sair da colmeia.
- E o vírus, também, senhor advogado? Disse a juíza, levantando o sobrolho e esticando os lábios sombreado de carmesim , ao mesmo tempo que apontava com a caneta na direção do pobre advogado de defesa, que ainda dava os primeiros passos na selva da Lei e dos Tribunais.
- Bem, não isso é outra coisa muito diferente….Balbuciou o causídico, mas já ninguém o ouvia.
- As abelhas são fundamentais para o equilíbrio do planeta, sem elas, as abelhas, o mundo morre, por isso são protegidas e é crime matar uma abelha. Isto é assim tão difícil de perceber? Perorava um dos elementos do júri, para o outro em voz baixa, mas audível, até porque na sala, cheia de silêncios nem uma mosca bulia, para além dos intervenientes na história e do escrivão que ia tomando boa nota de tudo.
- Sim, sim, caro colega, pois não há planeta B e coisa e tal e é assim que temos de viver daqui para a frente, diminuindo os gases na atmosfera e  e regenerando a vida. Somos a nova arca de Noé.
O colega fez de conta que não ouviu, mas pensou para os seus botões: a arca de Noé ou a nau Catrineta?
Adiante que se faz tarde.
Posso falar?
-Faz favor!
Vamos lá ver se entendi bem, pode-se matar o vírus, mas a abelha, não. Pode-se ir á rua passear o cão, mas as cobras e os lagartos têm de ficar em casa. Isto é de uma crueldade e dualidade de que não tenho palavras. Temos uma justiça bipolar.
- Senhor procurador, estamos apenas a aplicar a lei, concluíram os outros elementos do coletivo, quase em uníssono,  na sala vazia do tribunal.
Eram tempos difíceis e insólitos. Eram!
A medida de segurança aplicada, foi ténue. Manter a distancia de dois metros de abelhas, zangões e vespas, incluindo os seres humanos, que são a causa da transmissão. Matar, está fora de questão. A abelha é um ser protegido e a sua existência tem de ser assegurada, para lá do confinamento. Quanto ao vírus… Existe exclusividade e direitos adquiridos pelo vírus chinês, é do direito internacional e tem de ser respeitado, pode matar e nós matá-lo a ele. É uma guerra, e numa guerra todas as decisões dos tribunais são decisões marciais, de que não há recurso.
A pena ficou suspensa por três meses.
- Três meses, é muito tempo.
-Cale-se, e cumpra. E não diga que não está cheio de sorte.
- Mas a intenção da abelha era ferroar-me. Insuflar-me veneno. Iria morrer, eu sou alérgico à picada da abelha…mas já ninguém o ouvia. O policia algemou-o e conduziu o criminoso a casa. Os diversos funcionários dobraram as togas e puseram as máscaras para saírem do palácio, antigo quartel da tropa, que agora era da justiça. O dia estava com sol, se bem que um pouco fresco.
No cimo de uma árvore um ninho de vespas velutinas espreitava.

Carlos Arinto


Comentários

Enviar um comentário

Mensagens populares