Gidório



Numa terra não muito distante, na época em que as geadas de janeiro amaciavam as couves e se curavam os presuntos nos fumeiros, era costume ver um mendigo a vaguear pelas vielas da aldeia. A sua graça era Gidório. Teria outro nome, o nome de nascença, mas esse foi levado pelos ventos gélidos da vida. Havia quem jurasse por todos os santinhos que, em tempos remotos, fora uma lenda do futebol. Boatos de quem não tinha mais nada para fazer, ou pura zombaria? Ninguém sabia dizer. Certo é que, por entre a sujidade de muitos anos acumulada, reluziam duas bolas azuis, dóceis e cheias de mistérios por desvendar.
Muito à custa da sua afabilidade, Gidório ia conquistando os copos de bagaço que a miséria se recusava a pagar. Para fintar a solidão, temporariamente, improvisava com perícia contos do arco-da-velha, para um mar de ouvidos sequiosos de entretimento. Contribuía, assim, para o bem-estar da caixa registadora e alegria do gerente do único café da aldeia. Era uma espécie de relações-públicas muito rentável. Porém, o vínculo patronal terminava mal chegasse a hora do fecho.
Certa noite, uma em que, o diabo estava particularmente divertido a atormentar o sono dos justos, com uma tempestade descomunal, o nome de Bernardo veio à baila. O indigente aproveitou logo a deixa para contar mais uma das suas:
- Não deve ser do vosso tempo, mas uma vez passou um tornado por aqui. Aquilo é que foi duma violência! Ao pé daquilo, o temporal desta noite parecia uma brisa a fazer cócegas na cara, isto pra terdes uma noção! As árvores pareciam ervas acabadas de arrancar do cebolo, as telhas e chapas voavam como se fossem folhas de tília, a malhadeira do Peixoto foi parar à serração do falecido Zé Maria, que Deus o tenha. A borrasca apanhou-me desprevenido, é que, naquela altura, estas pernas já tinham a mania de me confundirem o caminho de regresso a casa.
- Não seria antes o vinho? - Perguntou uma voz em tom de provocação.
- Não, Deus me livre, vinha praticamente em jejum! Só trazia no bucho uma tigela que tinha bebido à vinda da feira! Mas continuando… Eu lutava com todas as minhas forças para não largar o poste da luz, senão também ia pelos ares, não é verdade? - Os copos tilintaram com as estrondosas gargalhadas que se fizeram ouvir no interior do café, imaginando a cena. - Bom, na minha aflição, vejo o demónio do Bernardo a vir de jipe. Pensei: é desta que não me escapo! Endiabrado como ele era, estais a ver, era “home” pra me desapertar as mãos, só para me ver a ir pelos ares! Aquele é que era um estupor de criatura! Às tantas, abrandou, mas seguiu viagem. Pensei que estava safo, até respirei de alívio e tudo, lembro-me como se fosse hoje! Mas, passado um bocado, o gajo deu volta e veio por mim.
- Borraste-te todo, não, Gidório?
- Pudera! Tu não te acagaçavas também? Malfazejo como era… Mas não. Parou o jipe, aquele “Toyota” branco, a cair de velho, e enfiou-me lá para dentro, antes que uma chapa me decapitasse as trombas! Levou-me a casa e ajudou-me a sair da carripana. Só foi à vidinha dele quando fechei a porta do cortelho e acendi a luz. Desde esse dia, nunca mais nenhum cabrão falou mal do Bernardo à minha frente, que eu apertava-lhe o gorgomilo!
Mesmo conhecendo a tendência do mendigo para exagerar nos contos e ditos, desta vez, os rostos coraram de vergonha e remeteram-se ao silêncio. Sem se manifestar, entre os presentes, estava o pai da rapariguinha por quem o Bernardo suspirava. Conversa vai, conversa vem, e a rapariga acabou por tomar conhecimento desse episódio.
Alguns anos volvidos, por altura das geadas de janeiro, a esposa do Bernardo contou aos filhos como conheceu o pai deles e como soube que ele era o tal. Contou-lhes a história duma lenda do futebol, que vagueou pelas vielas da aldeia. Uma lenda que ficou conhecida por driblar corações... Sua graça: Gidório. Um dia, Gidório iria saber o quanto foi amado.

Suzete Fraga
In "Contos de Janeiro"

(Imagem retirada do grupo Porto d'Ave - Imagens que falam)

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