Troglóbio, o velho




A tosse não o largava, agora que estava com “aquela idade” todos os cuidados eram poucos. Tinha manchas na pele e as forças já não eram como antigamente. Movimentava-se bem, mas tinha lapsos de memória frequentes. Não quisera ir para o Lar, que lhe diziam que seria a melhor solução e ainda se aguentava bem sozinho em casa, fazendo as refeições, lavando a roupa e entretendo-se a ler ou a fazer outra coisa qualquer.
 Por vezes ia até ao centro de dia, onde conversava com alguns amigos da mesma idade. Jogava às cartas e bebia um copito. Recebia a reforma e gastava-a com parcimónia, sem esquecer de apostar em alguns Jogos da Santa Casa.
Os seus interesses iam para a economia, matéria que dominava e que fora a sua vida ativa. Ia aprendendo a lidar com as tecnologias, embora estas o cansassem, sem explicação.
Sentia-se gasto, cansado e sem interesse por nada. Tinha vivido o que tinha a viver e o futuro não lhe interessava, pois não tinha filhos, nem descendência. Amava a vida, mas….inexplicavelmente defendia que se deveria acabar com os “velhos”.
Tal como em Atenas, em que o senado podia decidir matar os idosos que apresentassem debilidade física, ou doença incurável, através do envenenamento, defendia esta solução com convicção para espanto, repulsa e recusa dos seus “amigos”.
- Tás parvo, ou quê!?
Deixou de ter essas conversas com os companheiros de idade, e só com os mais íntimos se perdia, por vezes, num ou outro discurso mais alargado.
A vida depois da morte não o ofendia, mas também não lhe criava desejos de éden floridos ou de paraísos de leite e mel. Não o assustava pensar que tudo acabava com a morte, como não temia encarar outras vidas, fossem elas como as inúmeras religiões, seitas organizadas e ciências ocultas profetizavam.
Era uma boa solução, pensava. Não havia sofrimento, não havia culpas, não havia encargos para os outros, fossem eles individuais ou coletivos. Prolongar a vida, para lá do razoável, parecia-lhe patético.
O que via acontecer à sua volta estava errado, dizia-lhe a experiência, mas calava-se. Ninguém estava interessado em ouvir a sua opinião, ou seguir os seus conselhos. Era um espectador e tencionava continuar a assistir ao evoluir da humanidade até ao fim dos tempos. Pelo menos dos seus. Não, nunca se iria matar. Isso estava fora de questão.
Por isso, pensou, o melhor que tenho a fazer é arranjar uma namorada.

Nunca mais o vimos, dizem que partiu num cruzeiro, que vive ainda hoje – e já passaram mais de cem anos da história que acabamos de contar – algures numa ilha com uma mulher mais jovem, mas de uma beleza indescritível e maravilhosa, com quem partilha o dia e as horas sem se cansar.
Os amigos que restavam fizeram-lhe uma homenagem, num dia escuro de inverno, bebendo umas cervejas e descerrando uma lápide, na sala de convívio dos pensionistas, idosos e reformados que por ali habitavam. Dizia a pedra, colada na parede:
“Aqui viveu o troglóbio, que não morreu, apenas se retirou. Os amigos na hora da despedida.” Mas, isso já foi há muito tempo. O lar de idosos e centro de dia, já fechou, e os amigos, colapsaram durante uma pandemia, infetados.
Hoje, se o vissem, não o reconheceriam.

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