Confinados


Não era possível continuar ali. Como é que um casal se separa se não se pode separar?
São ambos jovens e vivem na mesma casa desde há um ano. Depois da fase do amor, passaram à rotina. Na prática é como se estivessem casados, mas na realidade cada um faz a sua vida, mais ou menos com a liberdade de saídas à noite, beber um copo com os amigos depois do trabalho, ir de fim-de-semana para qualquer lado.
O que é que uma coisa contradiz a outra? Em nada, dividem-se as despesas, dividem-se os carinhos e os desabafos e ainda se beneficia de uns almoços românticos, de quando, em vez.
A questão começou com o teletrabalho. Ficas aqui e eu vou para ali. Não, eu é que fico aqui dá-me mais jeito. Ali não quero, é muito fechado e fico a olhar para a parede, tu ficas a ver a rua.
-  Por falar em rua quem é que vai às compras?
- Vamos os dois! Na teoria funciona, na prática, não “desculpa estou a acabar isto, vai tu!”
-Estou com fome podias fazer uma refeiçãozinha…
- Eu? E desde quando é que eu sei cozinhar?
- Não podemos passar a vida a comer bolachas e bolos…
- Porra já te disse para não deixares a roupa suja espalhada por aí…
- E que bela ideia se fosses lavar a roupa.
- Sem dúvida, só que não chagámos a comprar a máquina de lavar e o serviço de lavagem, dali do fundo da rua, bem como todos os outros, estão encerrados.
Estamos lixados, já percebi. As “coisas” vão de mal a pior. Uma arranhadela qui uma alfinetada acolá.
- Olha lá, posso ver o meu programa de televisão preferido ou tenho que aguentar com as tuas estopadas? Estou farto disto!
- Vai para o quarto e vê no computador.
Ao fim de três semanas já não se suportam.
- Vou-me embora!
- Sim, e para onde?
- Não te conhecia essas facetas de egoísta, porco e malcriado. Diz um.
- Nem eu te reconheço, afinal és pior do que a minha ultima namorada. Queres é mordomias e quando é preciso trabalhar, colaborar e repartir tarefas ficas cansada, qualquer dias começas com as desculpas da “dor de cabeça” para não estar comigo na cama.
Estas discussões são como os gráficos do covid-19, as curvas vão subindo em flecha. Sobem, sobem e atingem picos inesperados.
- Não consigo estar aqui fechada.
- E eu já não consigo estar aqui fechado, contigo. São dois sacrifícios.
Um dos dois, pegou numa jarra e estilhaçou o vidro de Murano – aquisição de uma viagem recente a Itália – na cabeça do outro.
- Idiota, parvo. Selvagem.
Havia sangue e muitos vidros pelo chão. Ninguém morreu, mas a separação estava consumada.
- És uma besta, vais ver quando eu puder fazer-te mal. Escusas de dormir descansada, que acordas morta. Espera pela volta.
E tu, meu ordinário, vais ficar sem pixa se ma tornas a tocar.
Como não eram casados, não precisavam de um advogado. Fizeram ainda o irs em conjunto – mesmo na desgraça é preciso aproveitar as vantagens que o sistema oferece. Dividiram a casa ao meio e criaram linhas de afastamento um do outro. Ela, descobriu que até podia estar grávida, pelos sintomas que manifestava, ele recusou ser o pai da criança, “nem me fales nisso, pensas que eu não vi a cumplicidade com o teu coleguinha de workshop, quando te fui buscar ao ginásio”.
Haver nervos no ar, comichões na pele, desassossego – ainda por cima o apartamento não era grande e andavam sempre a tropeçar um no outro.
- Faz a merda da barba, pareces um troglodita.
- Olha quem fala, ao fim de uma semana sem cabeleireiro e maquilhagem está bem para um filme de terror. O joker tem melhor aspecto do que tu.
Os insultos eram constantes. A situação agravava-se. Tornava-se insuportável. Mas, continuava a não haver mortos. Todos os mortos agora eram consequência da pandemia. Já ninguém falava de violência doméstica ou institucionalizada. Havia uns laivos de economia em todas as notícias, mas o forte era a saúde ou a falta dela.
Por falar em economia: - tens dinheiro que me emprestes?
- Deves estar a gozar, não!
E foi assim, que de irritação e de insulto e provocação este casal se descasou. Não se separou, que as rendas de casa estão “pela hora da morte”, a água, o gaz e a electricidade também. Bem, dos combustíveis, nem é bom falar.
Os amigos também não colaboraram e ninguém tinha um espaço para qualquer um deles, nem que fosse só por uns tempos. “Pois, e depois dos tempos, tempos virão”. Passaram a fazer aconselhamentos, pelas redes sociais, sobre o stress, as emoções em situações de pressão, adaptação à mudança, resolução de conflitos em estados de ansiedade.
- Qualquer dia começas a “dar as cartas” e a fazer previsões do futuro.
- Vê lá se te calas, percebes tanto de finanças como eu de lagares de azeite, não percebo como é que tens um batalhão de seguidores das tuas opiniões parvas.
- A diferença entre aquela gaja da meteorologia e tu, é que ela, coitada, ás vezes acerta no tempo que vai fazer amanhã, tu nem isso.
Não se admirem, é sempre assim que acontece: quem não sabe aconselha os outros, emite opinião contrária àquilo que faz. Puxa-se dos galões, de uns estudos, de umas estatísticas e faz-se futurologia, dão-se conselhos, orientações.  Até mesmo umas receitas de cozinha.
Quando a ousadia se inflaciona, recomendações ao governo e palpites sobre a tudologia, de que são especialistas.
Como vê, é muito fácil! Passaram a ser titulados de “influencers” com milhares de seguidores.
Consta até – contaram-me que eu não vi – que foram convidados para o governo e assessores do Presidente. Não, ela não estava grávida ( mas pintou uma falsas tatuagens no pescoço e no cotovelo direito, que dão estatuto e certificação junto do publico/cliente a quem era destinada a actividade) e ele deixou crescer a barba, mas rapou o cabelo, ficava mais sedutor e credível no ecran.
Também, e digo isto, com reservas, porque como já atestei, eu não vi, contaram-me: ele começou a ter maneirismos de gay e ela optou por ser lésbica assumida. Não chegaram a ir ás casas de swing, porque estas ainda não voltaram a funcionar. Votam ambos na esquerda!
Não se admirem, eles andam aí.

Carlos Arinto

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