O tempo dos assassinos
Vivemos
no tempo dos assassinos
Tempo de todos os hinos
Ouvimos dobrar os sinos
Quem mais jura
É quem mais mente
Jorge Palma
Tempo de todos os hinos
Ouvimos dobrar os sinos
Quem mais jura
É quem mais mente
Jorge Palma
23
de Março 8:15
Marco
desiste, depois de uma terceira tentativa a tentar ligar para o tipo.
Tinha sido em vão. Podia ser o seu epitáfio perfeito: uma vida em
vão. A arma já tinha sido limpa. Poucos vestígios tinha deixado.
Mesmo assim, foi sem grande surpresa que viu a polícia invadir-lhe o
pequeno apartamento de Loures.
23
de Março 8:10
A
televisão anuncia a morte de um homem ao início da noite. Tinha
sido baleado à saída de uma pensão na companhia da esposa. Não
havendo outros indícios, tudo apontava para crime passional.
22
de Março 19:10
Raquel
entra em estado de choque ao ver Gabriel caído no chão, um traço
de sangue a tingir a calçada. O assassino foge depois do terceiro
tiro. O tempo pára. As pessoas acodem como podem, alguém chama uma
ambulância. Um homem ampara-a. Raquel desata numa crise de choro
descontrolado, liberta-se e abraça o corpo sem vida do marido.
22
de Março 19:08
É
agora, pensa Marco, escondido por detrás de uma das muitas
Acácias-do-Japão que bordeavam a avenida. Eles saem da pensão. A
roupa em desalinho e o rosto cheio de culpa. Marco não tem dúvidas.
Sai de trás da árvore e descarrega três tiros à queima-roupa no
peito do homem que arregalou os olhos antes de cair, já Marco estava
em fuga.
22
de Março 18:30
«E
se eles se despachassem, pá?», pensa Marco. Não tem para onde ir,
mas nunca gostou de esperar. A arma pesa-lhe no bolso e ele tem ânsia
de matar.
22
de Março 17:00
Marco
segue o casal até à pensão Aristides. Raio de sítio, pensa ele.
De tantos sítios interessantes em Lisboa para dar uma, tinham de
escolher a pensão mais reles da Baixa. Mas pronto, dez mil broas é
dinheiro…, pensa, enquanto fica à espreita, como um caçador à
espera da caça.
22
de Março 16:45
Eles
beijam-se em plena rua, à vista de todos. À vista de Marco, que
está suficientemente próximo para ouvir as juras de amor que
trocam. Ela puxa por ele. Perdem-se nas ruas mais antigas de Alfama.
Marco é a sombra deles.
22
de Março 16:00
«Vieste...»,
diz Raquel. O sorriso de cumplicidade desarma Gabriel. As dúvidas
dissipam-se. Tinha sido um jogo que o tinham deixado na mais completa
angústia. E agora ela entregava-se a ele completamente, como nos
velhos tempos. O gato e o rato, num jogo tão antigo como o tempo.
Raquel ia ser a sua perdição. A sua femme fatale de
olhos verdes e corpo que deveria ser considerado ilegal. Só dele.
Como tinha sido estúpido ao pensar … O beijo deixou-o sem reação.
No olhar dela havia um e um único desejo. O gato e o rato. Para ele,
era irrelevante o papel que assumia, desde que ela fosse sua. E
não havia outro. Apenas um jogo perigoso.
22
de Março 15:30
«Vem
ter comigo», leu ele no telemóvel.
«Onde?»
«Tu
sabes»
Gabriel
olhou para a última mensagem. Sim. Ele sabia, mas continuava
incrédulo. De um momento para o outro, a mulher pedia-lhe para
largar tudo e ir tem com ela, como faziam antigamente, quando mais
nada importava. Quando as carreiras não se tinham atravessado no
caminho dos corpos e das vontades. Pegou no casaco e correu para o
metro.
Ela
estava onde dizia que ia estar. Sozinha, à espera dele.
[
Sozinha, não: Marco vigiava-a há mais de duas horas. Tinha fome de
um bom bife, de uma imperial bem tirada e de matar. ]
22
de Março 14:00
Gabriel
regressa ao escritório. A raiva não o abandonara o dia todo. Começa
a ler o texto das alegações finais que tinha escrito durante a
manhã. Teria de ir a tribunal no dia seguinte, mas não conseguia
pensar. A raiva e o ódio desfazem uma pessoa. Recebe uma mensagem
dela. Ele não liga. Farsante. O amor é a verdadeira farsa, pensa.
22
de Março 13:00
Gabriel
almoça sozinho. Sabe que Raquel está algures com o amante. Nem lhe
passa pela cabeça almoçar com ela. Discutiriam os dois em pleno
restaurante, e ele não precisava disso. Tinha de manter o resto do
amor-próprio que ainda mantinha.
Tomara
a decisão correcta? Sim. A vingança servia-se a frio, segundo se
dizia.
22
de Março 9:00
Beijo.
Beijo.
Ele
saíra para o emprego. Longe ia o tempo que acordar ao lado de Raquel
era o melhor momento do dia. Agora não tinha dúvidas. O afastamento
dela, as mensagens sucessivas que recebia no telemóvel. Ele estava a
ser traído, não tinha dúvidas disso. Não precisava de provas.
Ligou para o Golias. Era o nome de código de um marginal que ele
tinha livrado um dia de ir para a cadeia.
«Preciso
de um favor daquele teu amigo», disse Gabriel.
«Do
Marco?»
«Sim.
Dá-me o número dele.»
FIM
Jorge Santos
Março 2020
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