Até que a morte nos separe.

A fotogenia era a sua principal qualidade. Ficava sempre bem nas fotografias… a fazer beicinho, a olhar de frente para a câmara, a passear descontraída, por entre molhos de flores, sentada no café olhando quem passa.
Vestia-se sem grandes preocupações e para além do cabelo sempre arranjado, não tinha outros luxos. Estava na meia-idade e sabia que o tempo é cruel. Não tinha ilusões.
Chamava-se Deodata, e porque o nome era uma assustadora fonética, nada condicente com a sua condição de mulher, todos a conheciam por Lili.
E Lilis há muitas. Umas de Caneças, outras de Alter-do-chão, algumas de Proença, e as falsas Lilis que iam buscar o diminutivos a coisa nenhuma ou a diminutivos que as mães lhe colocaram quando eram miúdas. Outras, também, por imitação.
Lili era casada com um homem de quem se separa há já algum tempo. Não se descasara – como agora se diz – nem se divorciara, como foi costume e moda nos anos da liberdade. Foi casa um para seu lado, porque sim, talvez por coisas que nem é bom lembrar, muito menos falar ou escrever.
Tinha um filho que rumara para a Roménia, onde vivia, e falavam por skype e pelo whatsapp que é como agora se comunica. Que país estranho aquele, onde o conde Drácula ainda faz fulgor no imaginário ocidental.
Tinha lá ido uma vez visitar o filho, mas não gostara e a língua, se bem que parecida com o português, era uma “língua de trapos”. Terra de ciganos, disseram-lhe. Tá bem, e depois? No regresso passou por um outro país, fazendo escala de voo – por opção e vontade em alargar horizontes - e ficando dois dias para “dar um giro” e gostara do que vira, era terra para regressar como turista, com vagar e tempo para saborear e aprender. Uma terra com costumes e língua bem diferentes, opostos mesmo, já que até o alfabeto em vez do romano, ou latino como seria melhor chamado, que usamos, é o cirílico.
As diferentes línguas e formas de escrita sempre a atraíram: o árabe, o hebraico, o chinês (seja isso o que for… mandarim ou cantonês e as múltiplas variações que existem) o aramaico. Não, as ditas línguas mortas não lhe despertavam curiosidade nem interesse: o grego, as runas, os hieróglifos e um sem numero de formas de falar que haviam caído em desuso ou sucumbido com as respetivas civilizações, eram para si “letra morta”. Só tinham interesse para os historiadores.
Esta escala na Arménia despertou-a para valores que estavam adormecidos no seu subconsciente, com particular destaque para o monte Ararat, que foi onde – diz a lenda e a Bíblia – Noé parou a sua barca, depois do diluvio. Uma ilha no meio de muitos conflitos com a sua carga pesada de desgraças, mortandades e extermínios ensaiados.
A ideia era ir dali à Turquia, outro pais com exotismo para os ocidentais, mas os constantes conflitos políticos na região não haviam permitido esta visita. Aliás era a segunda vez que Lili era afastada da Turquia, da primeira vez foi quando visitou a muralha da China – à mais de vinte anos -  porque  um golpe de estado tinha fechado as fronteiras.
Lili não se deixava derrotar. O marido…Ela queria lá saber do marido. Do ex-marido, seria melhor dizer assim, que um dia ainda acabaria por lhe vir bater à porta. Era um traficante, mais ou menos famoso, pelo menos nos meios dos segredos informáticos, da lavagem do dinheiro e das fortunas em trasfega de paraíso fiscal em paraíso fiscal. Sim, parece que agora estava em Angola.
Vivia sozinha, por opção própria e porque não conseguia arranjar companheiro à sua medida e exigência. Sabia que era uma pessoa difícil, com hábitos adquiridos de que não se conseguia desapegar. Tinha poucos amigos e deixara de trabalhar para ficar em casa sem fazer nada o que lhe causava algum desgosto. Opção errada. Na altura parece-lhe uma decisão boa e acertada, mas depois sofrera as consequências da solidão, do abandono e da ausência de convívio.
Sim, podia ir aonde quisesse, mas….não ia. Por opção própria dava-se com pouca gente. Mas regressemos ao que nos trouxe aqui: Lili era fotogénica. Muito fotogénica. Com uns óculos escuros e o cabelo apanhado no alto da cabeça, seduzia qualquer um, fazia olhinhos e levava as pontas do cabelo á boca, como qualquer adolescente.
Fez uma campanha publicitária a cremes e amaciadores, mas não achou a experiência interessante. Estranho ver-se em cada esquina, em muitos outdoors, a sorrir e a colocar o dedo junto aos lábios num chamamento de apreciem-me! Vejam a minha pele perfeita! Não gostavam de ser assim como eu? Charmosa, bonita, jovem apesar da idade? Pois, não é muito fácil usem o creme tal e coisa. O publico alvo eram as mulheres com idade aproximada à sua, uma multidão.
Às vezes até tinha que andar disfarçada para não a reconhecerem e ter que falar com as pessoas que lhe gritavam histericamente:  mas não vem esta semana na revista? – Sim, sou eu. Obrigada!
A fotogenia de Lili era uma bênção, mas também uma praga, ou um mau caminho. Numa altura em que estava mais amedrontada, fez uma sessão de fotografia nua, em frente ao espelho, lá em casa, sozinha, para colocar nas paredes, guardar na pen e arma de arremesso se fosse preciso.  Até ela ficou apaixonada. Apesar da idade continuava com um bonito, sensual e atraente corpo, fruto de algum ginásio e uma alimentação cuidada.
Embrulhou-se num cobertor, no sofá e leu um livro. O tempo estava frio e bom para ficar em casa. O carro tinha ido para a oficina e parecia que “todo o mundo” tinha desaparecido. Nas televisões os mesmos programas de sempre, sem pachorra. Lili lia um livro quando lhe bateram à porta.
Era o serviço de entregas da Gloco a quem encomendara o jantar. Pensaram o quê? Que era um violador, um assassino? O marido retornado? O filho que viera passar umas férias a casa? Ou a vizinha de baixo – essa sim modelo profissional quase anorética – a pedir-lhe um raminho de salsa como se fazia antigamente?
Era o jantar, que Lili não tinha pachorra para cozinhar. Agora era tudo ao domicílio e sem esforço. Ficava-se com tempo para tudo, com tempo até demais…fazia-lhe falta um homem que pudesse infernizar. Lili sorriu, nisso era boa, a infernizar.
Bem, não só nisso, mas adiante, que agora os atributos de “ser boa” não interessam nada. Fora uma profissional competente e respeitada. Criara o filho com dignidade e vivera uma vida com largueza de espirito e experiências enriquecedoras. Tinha pena de ainda não ter netos, mas não estava a ver-se no papel de avó.
O telefone tocou. Era publicidade!
Lili foi para a cama, mas não conseguia dormir. Depois do jantar ficara no sofá e adormecera sem dar por isso, agora acordara com um torcicolo e o sono fugira. Masturbou-se.
Amanhã iria à praça comprar peixe fresco, prometera a si mesmo. Há quanto tempo não comia peixe? E legumes.
Parabéns, Lili, hoje foi o seu dia de anos. Ninguém se lembrou, mas também não havia velas para apagar. Parabéns! Lili, que contes muitos, desculpa terem sido atrasados. Apenas aquele fogo interior com que lidava 365 dias por ano e que a exaltavam. Então dizia asneiras e graçolas sem graça. Falava com o micro-ondas, com o frigorifico, com a sanita – Quero lá saber que me ouçam! Era assim a nossa Lili, um vulcão entornado em lençóis lavados.
Tomou um banho de água quente. Nunca havia conseguido tomar banho de água gelado, como muitos diziam que faziam. Vestiu um pijama lavado.
Lá fora o vento batia nas janelas e Lili pensava que “o vento cala a desgraça, o vento nada me diz”, um poema do Manuel Alegre.
Até que a morte nos separe! Boa piada!

Carlos Arinto

* A foto é um desenho de Mestre  José Rodrigues ( 1936-2016 escultor, pintor e ceramista) executada em tributo a Pedro e Inês.

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