O pássaro de mil cores


Ela tinha nascido em plena crise de pandemia que assolou o século XXI. Cresceu aí, dentro de casa e só saia à rua para passear o cão, quando mais velha teve um. Um bébe lindo, o cão, a criança que acabava de nascer era igual a todos os bebés: admirável e sem igual para os pais, pequenino, inseguro e frágil para todos os outros. Já tinha passado o tempo em que amigos e familiares achavam todos os bebés parecidos com o pai ou a mãe. Cara chapada, diziam.
O tempo foi de chapada, disso não havia duvida. Chapada na forma de viver e de estar em sociedade. Hábitos que se modificaram, empresas e negócios que se alteraram. Um mundo que se foi virando ao contrário e que se estabilizou depois em impensáveis formas de viver, nunca imaginadas. Ou se já vistas, só em banda desenhada, mas sabe-se como os autores dos quadradinhos são alucinados pelo impossível.
O bebé cresceu, foi crescendo e ganhou formas, jeitos e balanço, do gatinhar ao bamboleio pois Deus coloca sua mão “por baixo” e a criança, não cai, não bate com a cabeça na esquina, não se aleija que a fralda amortece o sentar inopinado, no chão, quando se desequilibra.
Frequentou a tele-creche, que é importante saber que há outros meninos na vida, esteve na escola e nas teleconferências de disseminação de conhecimento e saber e foi crescendo, sempre crescendo. Inscreveu-se num clube de futebol do seu bairro e fez furor nos jogos de computador e nos jogos semirreais que à distância se faziam entre equipas que alcançavam vitórias virtuais correndo no quarto apertado, entre paredes. Cantou karaoke e editou vídeos consigo a representar.
Mesmo na adolescência ensaiou alguns trabalhos em sistema de teletrabalho, imitando os pais. Vivia feliz a petiz.
E os anos foram passando, passando e passando e quando deu por isso estava na altura de ser adulta e fazer vida como era suposto acontecer.
Os pais iam envelhecendo, na análise das curvas que os gráficos mostram e que agora se gostava tanto de analisar, um traço crescia, outros estabilizavam e se achatavam, mesmo alguns, mais ténues desciam. São os teus avós, diziam-lhe.
Ela não percebia (sim, a família os pais dos nossos pais)  mas eram uns velhinhos simpáticos que lhe acenavam do outro lado do ecrã e ela correspondia.
Começou a ler livros e histórias que encontrava e que lhe falavam de coisas que não compreendia. “Guerra e Paz” um calhamaço enorme, o “Doutor Jivago” um filme interminável. Começou a pensar que por detrás do mundo outro mundo havia. Ou tinha havido…enfim, coisas da juventude e da adolescência.
Deixou-se ficar na cama – certa manhã, em que não lhe apetecia acordar – e imaginou que seria bom se pudesse voar. Se pudesse sair dali, andar lá por fora…enfim planar, bater asas, acelerar em velocidade ou despique com outros. Não sabia que essa aspiração era antiga e muitos outros já a haviam tentado, sem sucesso, começando por um tal pássaro que se aproximou do sol e viu as suas asas serem derretidas pelo calor.
Ali, onde vivia, o ambiente era controlado, nem frio nem calor. Tudo agradável. Era assim o paraíso, diziam-lhe, ouvia quando escutava os pais e os amigos a falarem.
 Ah! Mas se pudesse voar! O que ela não faria?...
E um dia, numa deslocação virtual a um lugar, descobriu que era possível. Bastava acreditar. E a bebé, menina, criança, adolescente se fez pássaro e arranjou companheiro:
- Como te chamas?
- Fernão Capelo Gaivota! Disse o amigo.
- Eu ainda não tenho nome, venho de um tempo em que os nomes não existem.
- Temos de resolver isso. Passas a ser o amor. O meu amor.
A menina riu. Nunca lhe tinham chamado isso. E gostou. A palavra soava-lhe bem. Os pais e os avós já a tinham utilizado, lembrava-se, mas agora possuía um significado diferente.
E tudo voltou a ter o sabor antigo de que falavam os livros, as histórias e os sonhos.

Carlos Arinto

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