regresso à barbárie



Havia um frémito, pouco usual, no País, mas eu andava fugido. Tinha-me escondido num sótão, algures (nem aqui o posso revelar) numa casa que encontrara desabitada e ali fazia a minha vida, que posso considerar desgraçada.
O que correra mal? Não sei…talvez a evolução “das coisas” seja assim mesmo, sem mais explicações.
Tinha-me despido de todos os meios tecnológicos e vivia como antigamente, qual ermita e cão abandonado numa escarpa da serra, sem orientação e sem esperança. Tudo em redor estava controlado. Sensores que detetavam movimento, por identificação do calor de um corpo, torres de emissão e transmissão de sinal que localizavam aparelhos em movimento, captação de rostos, esgares, que identificavam quem é quem, onde estavam, onde iam, com quem se encontravam. Leituras de adn (felizmente esta técnica ainda insipiente) E de marcas deixadas pelos dedos em objectos, à distancia, para identificação de quem esteve ou passou por ali.
Eu andava fugido de tudo isto. Tinha conseguido não ser “chipado” por rebeldia e sem ter qualquer marca identitária no corpo, como tatuagens ou números que se colocam em bois, porcos e judeus de antigamente, havia conseguido isolar-me e ficar a salvo. Pelo menos por agora.
O mundo corria pelo fio de Ariane, um crime, um mau comportamento, uma qualquer ousadia era punida pelo puxar do fio até ao culpado, origem de todo o mal e da tresloucação.  Quem estava com quem, onde a que horas em que circunstancias deixara de ser segredo eram apenas um dados computorizado que o algoritmo desfiava, perseguia e encontrava em segundos.
Tudo começara com um simples gesto sem significado.
- Ofereço-te estas flores.
Cravos e rosas vermelhas em ramo tinham sido estendidas de um braço para outro, numa oferta de paz e amizade.
Houve um olhar de repugnância, de nojo e de recusa.
- Não coleciono cadáveres.
Foi a resposta inesperada. Sem “ser por mal” – pois quem assim respondia amava as flores silvestres do campo, vivas e erectas, ou mesmo as criadas em viveiros, em vasos com terra e estrumadas, adubadas e protegidas dos raios sem misericórdia do sol – este facto conduziu a que se extinguissem todas as flores que decoravam as casas em jarros de vidro com água.
- Pela verdade, nunca pela mentira ou os artificialismos. Foi a resposta complementar.
- Mas não gostas de flores?
- Não, são um disparate.
Um cãozinho matreiro veio erguer a perna e urinar num canteiro, quase aos nossos pés, com salsa, coentros e hortelã.
“Todo o mundo vive confinado” em redomas de vigilância activa, que tudo controlam. Aqui, onde estou tenho a certeza de não estar a ser olhado. Quando um drone passa nos céus, escondo-me. Procuram sempre resistentes, pessoas que se excluíram e se escondem, como eu, e que fazem a guerrilha e o combate – a resistência se assim quisermos chamar – sempre que possível.
Comemos do que caçamos e do que pescamos. Como antigamente, não fazemos hortas, porque estas seriam facilmente detetados dos céus. Comíamos o que apanhávamos espontaneamente na natureza: cogumelos, agrião nas ribeiras, espargos, beldroegas e uma infinidade de outras “ervas” que íamos descobrindo.
(repararam no plural desta minha frase, seria o suficiente para os algozes, os carrascos e os vigilantes me obrigarem a confessar que não estou sozinho e quem são os meus parceiros. Aqui, não tem importância e serve para dar uma nota de esperança pois não estou sozinho. Não somos loucos, nem aprendizes de feiticeiro, somos guerrilheiros)
Também não somos anarquistas ou alucinados. Somos cautelosos e desconfiados por obrigação de sobrevivência, somos calados porque todos os sons são escutados. (onde é que eu já ouvi tudo isto?)
 Somos a nova versão da Annie Frank. Uma sequela.
Tudo isto, no dia em que se comemora a liberdade!
25 de Abril, sempre!

Carlos Arinto (algures no ano de 2020)
Testemunho escutado na “rádio liberdade” emissão pirata emitida do estrangeiro.

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