Que seja o que Deus quiser


Naquele dia Deus aproximou-se da janela e espreitou para fora. Não era uma coisa que costumasse fazer, porque pelo facto de ser Deus, isso lhe permitia saber tudo, ver tudo e tudo presenciar sem ter que se mexer.
Mas, naquele dia estava entediado. Mesmo sendo Deus, também tinha esse direito e esse sentimento, pois porque é que não há-de ter? O tédio era uma coisa que às vezes lhe passava pela pestana e dormitava um pouco. Quando acordava tinha o expediente atrasado e era um “ver se te avias” a despachar, a autorizar, a proibir, a vigiar, a contentar, a satisfazer e a dar instruções.
O mundo girava e lá ia nas suas andanças, nem melhor nem pior, mas como os homens faziam. Ele não interferia, que cada um assumisse as suas responsabilidades. As responsabilidades dos homens eram bem pequenas, mas isso era devido à sua esperança de vida ser muito baixa e limitada. Havia bem piores e não se queixavam. Os seus trabalhos também eram absurdamente ínfimos, se comparados com o universo que Deus geria e com a imensidão do caos, dos buracos negros e das tempestades solares, vida e morte das estrelas.
Mas, cada um na sua, e tudo corria com os atropelos do costume, os problemas resolvidos, outros atirados para longe, os amores consumados, as inspirações e loucuras de momento realizadas, (para depois se desfazerem como baralho de cartas) e logo a seguir recomeçarem a serem reconstruidos, os medos, as alegrias, os idiotas promovidos a aspirantes (sabe-se lá a quê?) outros massacrados, muitos reciclados, tudo fruía como um caleidoscópio multicor. Deus não interferia na conjugação da composição hereditária que era arbitrária. Os mais fortes venciam os mais fracos e reproduziam-se. Já por duas ou três vezes tivera a tentação de alterar o logaritmo da evolução, mas não chegara a fazê-lo. Os vivos robusteciam-se sozinhos e adaptavam-se, modificando-se ao longo dos tempos, e Deus pensava que era adequado.
E Deus viu que era bom.
Por vezes havia percalços e inabilidade, mas no geral o sistema e o algoritmo inicial funcionava bem.
Deus estava à janela distraído e olhando sem ver. A sua mesa de trabalho acumulava cartas, vídeos e chamamentos para tudo e mais alguma coisa. Ele limitava-se a separar por assuntos os pedidos recebidos, havia mesmo um sistema automático que fazia a separação sem necessidade de esforço. Deus era um perfecionista e havia notado alterações nos comportamentos da sua criação em muitos lugares de culto e exaltação que estavam abandonados. A fé mantinha-se, que essa não morre.
A estética desses lugares até ficava mais bonita, apreciou inclinando a cabeça. Claro que sabia o que havia acontecido e quais as consequências, isso eram pormenores, ele gostava de colocar uma esfera a rolar e depois acompanhar o seu movimento, sabendo onde vai parar, se pára ou não, se é travada ou deixada ir sem oposição e onde acabará por deter-se, mas isso não tira a curiosidade de apreciar a sua fruição. Omni tudo, multiplica por múltiplos infinitos tudo, incluído a fruição.
Toda a ação desencadeia outras ações, Deus não precisava de fazer cálculos e estudar gráficos, até sorria com os esforços, tempo e dinheiro que os humanos desperdiçavam a procurar soluções que estavam ali à mão – dissimuladas é certo – e que procuravam para justificar o que era evidente: alterarem a linha e o curso das suas vidas, consequências que já estavam programadas, mas que requeriam que achassem a forma de o fazer.
Também achou curioso ver camelos, na praia, em Marrocos, pavões em cidades Argentinas, javalis em Lisboa, orcas em Veneza… natureza e animais misturavam-se agora que a poluição havia regressado a valores aceitáveis e o silêncio das grandes metrópoles era um facto. A situação era transitória, sabia-o, mas era curioso ver como tudo funcionava na perfeição. As plantas cresciam e toda a água estava a ser filtrada, o ar mais respirável.
Os humanos não iriam aprender nada, também o sabia, estava-lhes no gene, eram teimosos, inconscientes e selvagens e regressavam sempre aos mesmos erros, aos mesmos desvarios. Tudo isso estava previsto, calculado e estipulado em acontecer.
Passado o tédio, voltou ao seu mundo. Iria ver como estava um planeta parecido com a Terra, que existia a cento e dez anos luz desta. Tinha o dobro do tamanho da Terra e estava a girar um pouco mais próxima da estrela que unia o sistema. Ainda estava na fase inicial da sua experiência, mas existia água, atmosfera e solo onde se podia assentar muita coisa. Tinha de verificar as coordenadas de tudo aquilo, seria preferível deixá-lo assim? Afastá-lo um pouco mais da fonte de energia? Diminuir ao seu volume ou deixá-lo como estava porque oferecia outras possibilidades de criação? Era uma vida fascinante esta de ser Deus.

#Vai tudo ficar bem# pensou.

Carlos Arinto

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