As saturnálias


O convento estava abandonado, já há algum tempo. As diversas salas e salão nobre encontravam-se em bom estado de conservação, tirando um pouco de pó, tudo funcionava na perfeição e bastaria uma pequena limpeza para que pudesse retomar os seus dias de glória.
António da Costa pensou que seria um bom investimento, arrendar aquele espaço para as suas saturnálias. Era uma festa antiga que havia caído em desuso, ou melhor, evoluíra para formas mais sofisticadas e agora, existia no irreconhecível.
As escadarias que davam acesso ao monumental convento estavam cheias de leões, lagartos, dragões e outros mamíferos, repteis e animais míticos, com aspeto bélico, o que criava uma sensação de fortaleza e de inexpugnabilidade. Os corredores e salas interiores eram decorados com frescos e as paredes mantinham os diversos quadros, alguns de fraquíssima qualidade artística, mas ecos de um passado… que passou.
O salão nobre era um semicírculo, ligeiramente ovalado, com uma cúpula por onde entrava a luz, como o transepto de uma igreja, em cujo centro  se ergue a cúpula em claraboia atirada para os ceús.
O dinheiro estava disponível, não interessava o custo e a sua fantasia levava-o a delirar com cenários edificantes, se bem que obscuros e proibidos à maior parte do publico. Eram asceses de purificação ritualísticos que importava voltar a consagrar. O tempo havia esquecido estes antigos costumes e toda a efervescência que existira naquele local havia cessado devido a uma pandemia, que afastara os atores e os deputados. Mas, controlada a situação e regressada a normalidade – que se alterara e já não era como era – havia caído em desuso e agora, o teatro e a sua representação encenada ou espontânea, feito de guião e papeis distribuídos a cada um, ou de improviso, como numa banda de jazz - havia sido levada para outro lado.
Retomava-se aos idos maravilhosos da alegria, da euforia e do mergulho na diversão e entretenimento. Havia que aproveitar o tempo, que o facto de ter havido anos em que nada se podia fazer (porque era proibido, porque não se podia ou porque não se devia, ou ainda porque era impossível) haviam passado, e o corpo pedia celebração.
O corpo, a mente, o espirito e tudo aquilo que quiserem acrescentar.
Os convidados foram escolhidos a dedo. Homens elegantes, mulheres bonitas, formas de vestir adequadas e rigorosas. Feitas entrevistas aos candidatos como se faz para um qualquer acontecimento digno desse nome, em que o casting não pode ter erros, tudo ficou a postos para o dia em que seriam, finalmente, convocados. Foram assinados documentos de confidencialidade e exclusividade e como uma “célula adormecida” dos espiões cada um aguardou, em casa, a chamada.
Esse dia chegou e não só para uma, mas três dias, em datas diferentes e em sequência. 25-01-13.
Tudo estava deslumbrante, as luzes em meio-tom, a música baixo e melosa nalgumas salas, noutras em batidas fortes. Havia bebidas espalhadas por diversas bancadas ao longo das paredes. Cigarros e drogas leves para quem se quisesse servir. Comida em abundancia em self-yourself de cada vez que se tivesse forme e apetite, com destaque para as frutas, os mariscos, as ostras, as pimentas e em cestinhas de seda, qual ovos da Páscoa, farinha açucarada, que tinha o efeito de potenciar as forças e devolver ao cérebro e ao corpo a capacidade de resistir.   Era uma orgia.
Tapetes com flores e bandeiras emprestavam glamour e afirmação ao evento e todos se passeavam e desfilavam por entre espelhos e neons, conforme que iam chegando, em carros de alta cilindrada conduzidos por chaufers contratados especialmente para isto.
À medida que a tarde corria o ambiente ficava mais interessante e desinibido. Havia conversas, afagos, olhares entusiasmados, marcações de encontros futuros, troca de casais e até negócios a fazer quando saíssem dali. Tudo estava bem e tudo corria conforme o esperado.
António da Costa observava tudo da sua varanda, situada numa coxia um pouco mais elevada, onde várias mulheres bebiam champanhe e traçavam a perna deixando ver lingeries pretas e pernas compridas que desaguavam em cinturas de abelha. Os braços de andorinha e os seios nus cristalizavam o quadro de um pintor renascentista famoso, que retratara o esplendor da sua época. Agora, nada lhe ficava atras.
A celebração foi um sucesso. Muito melhor do que uma, acontecida à algumas décadas e que ainda paira na memória dos mais velhos, que teve lugar na quinta patinho, ali para os Estoris. Não havia, aqui, estrelas do cinema, nem famosos, é verdade, mas verdadeiras mulheres e verdadeiros homens, e isso chegava. (embora o descrito tenha ocorrido próximo de um local de Lisboa conhecido como freguesia da Estrela, onde uma basílica fazia concorrência a este palacete e houvesse um jardim com idêntico nome) Tudo foi misturado e cruzado e de toda a panóplia de entrelaçamentos, ficou a força da nação reforçada com virilidade, paixão, gritos de incitação e exclamações de afirmação.

E o velho palácio, antigo convento, sede de muitos eventos, voltou aos seus tempos de glória. A comemoração durou dois dias e foi única, não se repetiria, pois as seguintes, aquelas já anunciadas, terão matriz diferente, no vestir, nos berros de prazer e de reivindicação como na forma de agradecer e se submeterem. Todas as expressões do ser estão representadas, mesmo as mais transversais à sociedade e até algumas consideradas desviantes. Na sala do arco-íris, nos calabouços das torturas, no aconchegado canil, na domus familiar, no chifrudo dos chifrudos e nos passos perdidos do swing bem como – e sem esquecer – o simples voyeurismo – todos disseram presente e festejaram. São expressões e espelhos que copiam uma mesma realidade: as saturnálias.


Carlos Arinto

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