Trambolhão e Queda




- Vamos para Marrocos!
O galã,” de cinema mudo” fazia cantata à rapariga do outro lado do balcão, enquanto bebia uma cerveja pelo gargalo da garrafa.
- Arranja aí, mais uns tremoços…lá, podemos viver os dois, tenho, lá, família e casa.
A rapariguita olhava para ele e sorria. Marrocos ? A terra das mil e uma noites. Queria ir, mas tinha medo. Tinha ali um bom emprego, nada de excepcional, mas ganhava o suficiente para viver. Gostava do patrão e dos clientes, mas estava apaixonada.
A rapariguita era casada, mas uma rapariguita casada pode-se apaixonar por outro, ou não pode? Claro que pode! E aquele rapagão era bem bonito.
- O que é que dizes?
Ela voltava a rir envergonhada. Não dizia nada, mas dava a entender que não discordava.
- E depois lá como é que vivemos?
- Ora, deixa-te disso! Eu pago tudo, nem precisas de trabalhar.
A tentação era grande. Ir para Marrocos! Ir para, lá!
Passaram-se alguns dias e a insistência ia fazendo o seu caminho:
- Fazemos assim, amanhã, quando saíres daqui, vamos para um hotel, depois, de manhãzinha, apanhamos o avião – já tenho tudo programado – quando deram por nós já estamos longe.
- E o meu marido?
- Deixa lá o teu marido, quando der por isso já estarás longe e bem sossegada comigo. Ele que se dane. Afinal queres mesmo deixá-lo ou não!?
- Não sei…não sei.
A rapariguita pensava, dava voltas à cabeça, que fazer? O rapaz agradava-lhe, disso não tinha duvidas. O marido aborrecia-a e cada dia andava pior, mais zangado, mais autoritário. Não tinham filhos e isso era bom, permitia-lhe pensar com mais liberdade. Viver com aquele homem que ali aparecia todos os dias, para beber uma cerveja e conversar com os amigos, agradava-lhe. Olhava-o de soslaio. Era uma brasa e sentia-se tremer só de pensar em estar com ele na intimidade.
Tinha genica, à vontade e boa conversa. Sabia seduzir e mostrava que não tinha dificuldades com o dinheiro, pagava uns copos aos amigos e depositava uma notazita – pequena, é certo – de vez em quando,  na caixa que existia no balcão, “para os empregados”.
- Olá, linda, boa tarde, então é hoje?
- É hoje o quê?
- Que vamos fugir…
- Não seja parvo…
Mas apetecia-lhe. Deixava o emprego, deixava o marido e ia começar vida nova noutro lado. Lá, em Marrocos, as mulheres vestiam-se de maneira diferente, mas os tecidos eram bem bonitos e as mulheres pareciam felizes. E todas aquelas coisas novas que vira na televisão, num programa chamado “ o nosso mundo” em que tudo era cor, alegria, luz e riqueza.
Bebiam chá e havia camelos, mas isso ainda tornava o destino mais exótico
Até que um dia, aceitou.
Foram para um hotel na baixa da cidade e lá ficaram três dias, pois tinha havido um atraso na marcação dos bilhetes para a viagem. Ao terceiro dia, o rapaz não regressou da sua ida à agência. A rapariguita sentiu-se enganada e ainda teve que pagar do seu bolso o quarto do hotel e as refeições que haviam comido, na cama, como uma lua-de-mel antes do noivado.
Não podia regressar para casa. Alugou um quarto pelo preço mais baixo que conseguiu encontrar, dedicando os dias seguintes á procura do seu apaixonado. Foi ao trabalho, que este dizia ter e confirmou que sim, que era conhecido ali e que…se havia despedido e deixado o emprego há três dias. Que havia regressado à sua terra, disseram os colegas.
- Qual terra?
- Marrocos, pois onde haveria de ser, já que o sacana (se lhe coloco as mãos em cima está fodido comigo) era marroquino.
A rapariguita ficou desolada, fora enganada e usada. O filha da puta do homem havia gozado com ela, afinal só queria dormir com ela. Foram três noites do bom e do melhor de gozo e de diversão, mas, e agora….?
Arranjou trabalho numa padaria que laborava durante à noite, como é normal nas padarias e pastelarias, a estender farinha e massa em tabuleiros, para fazer bolas e caracóis, com frutas secas e cristalizadas.
Tinha vergonha de voltar para casa, de ver a família e de encontrar algum amigo ou cliente do bar onde trabalhara. Tinha medo do marido, que se suspeitasse do que acontecera lhe daria uma carga de porrada de que nem queria em sonhos imaginar. A notícia já se devia ter espalhado, estas coisas sabem-se sempre. Estava a entrar em desespero, não ganhava para pagar a renda, nem para a comida. Pensou em atirar-se para debaixo de um comboio, que passava ali perto.
Mas, não o fez.
Arrumou uma história para contar, voltar ao antigo patrão – uma coisa de cada vez – que tinha sido uma urgência, que tinha ido ajudar uma familiar no Minho…qualquer coisa assim, que não tinha dito nada porque estava muito aflita. Mas, a “esta hora” já o antigo patrão a teria substituído por outra.
E o marido? Tê-la-ia procurado, ou não teria querido saber? O mais certo é ter-se embebedado e gritado nomes feios à porta de casa para que toda a vizinhança soubesse. O marido, bah! Nem eram casados.
- E agora? Como ia fazer? Questionava-se e não encontrava resposta nem solução.
Começou a ler uns romances que existiam lá pela padaria e achou a sua história banal e repetida em cada capítulo do que lia. Parecia que alguém já havia escrito a sua história, mesmo antes que tivesse acontecido. Como é que as pessoas que escrevem, aquelas coisas, sabem do que ainda não aconteceu?
E se fosse para Marrocos à procura do tipo? Mas Marrocos é tão grande, que disparate. E depois á procura dele para quê? Não queria nem vê-lo. Homens! Homens! Homens!
Havia um pasteleiro que lhe fazia olhinhos, ali por volta das cinco da manhã, mas também este se metia na pinga, andava sempre com uma garrafita de aguardente ou bagaço ou outra merda qualquer, no bolso. Não! Uma vez chegava. Nunca mais! Iria viver sozinha, independente, sem ninguém a quem dar explicações ou servir.
A rapariguita, que se foi tornando mulher, mesmo com uma alimentação pouco cuidada foi ganhando corpo e atreveu-se a ter ambição. Passado meio ano matriculou-se num curso gratuito de formação profissional.
Dez anos depois é advogada e possui escritório na avenida principal da cidade. Um dia, um estrangeiro procurou-a, para que tratasse de um processo de legalização de residência e de transferência de divisas. Desconfiou, mas não tinha a certeza. Quando se certificou de que o seu cliente era o mesmo que a tinha abandonado num quarto de hotel, sem nada e dívidas para pagar, combinou um encontro, no andar mais alto do prédio, que tinha um varandim em toda a volta, ao estilo bem característico da baixa pombalina. Fê-lo de viva voz numa ocasião em que falou com ele à porta do escritório, amanhã às cinco, sim cá o espero, eu venho busca-lo aqui á porta, não se preocupe.
Subiram no elevador, depois umas escadas em caracol. “Quero  mostrar-lhe a cidade, antes de lhe apresentar uma pessoa”, disse.
- Sim, é uma cidade maravilhosa, já aqui vivi em tempos, mas nunca tinha visto a rua de tão alto, os jardins, as praças e o castelo, são magníficos. É por isso que eu quero morar aqui. E vou trazer a minha mulher para cá, concluiu.
A advogada assentiu, sim faz muito bem. Já viu quem está ali em baixo ao pé do vendedor das castanhas?
À distância a que estavam era difícil distinguir quem passava na rua. O marroquino debruçou-se para ver melhor e bastou um leve empurrão para que o seu corpo balançasse e caísse no espaço aberto até fazer plof, na calçada.
Plof. Paff, catrapuz e é um salpicar de sujidade, sangue, vísceras e bocados de cérebro por tudo quanto é lado.Gritos, pessoas que se afastam, mais gritos, uma ambulância que é chamada, um policia que corre a ver o que está a acontecer.
A antiga rapariguita, advogada, saiu rapidamente dali e com um sangue frio de que não se julgava capaz, regressou ao seu gabinete.
- Não, não tivera notícias do seu cliente desde ontem, não tinha dado por nada, não – dissera á polícia. Mas o que fazia ele quase no telhado, junto aos varandins? E a propósito de quê? Não tinha conhecimento de que ele estivesse ali no prédio, naquela hora em que se encontrava a trabalhar, no seu escritório. O sótão? Não era sítio onde alguma vez fora, nem sabia como lá chegar. Sim era uma tragédia, uma desgraça, concordava, este tipo de coisas são sempre negativas para todos.
Um jornalista descobriu que o estatelado no chão da rua, por ter caído do último andar do prédio na avenida era um psicopata que abusava das suas presas às quais montava ciladas. Gostava de rapariguitas, de mulheres magras, esguias e abusava delas.  Sim, tinha cadastro em Marrocos. Havia, jornal, uma fotografia de uma mancha vermelha e escura no chão, onde já não se  distinguiam os bocados do que fora alguém.
- Estiveste muito bem. A reportagem saiu excelente, disse a advogada para o jornalista, bebendo um whisky, num bar de um bairro típico onde era moda ir depois do trabalho.
- Assunto arrumado.
- Sim, a polícia já arquivou o caso, ou se não arquivou vai arquivar. Que pena e logo um cliente teu…
- Deixa lá, eu pedi o pagamento adiantado e ele pagou.
- Sim, tinha de pagá-las!
Beijaram-se ao de leve, como dois cúmplices.
- Quem sabe o que o sujeito andava ali a fazer!?
- Tens razão, Quem sabe?

Carlos Arinto

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