E, se...



E,se uma qualquer hecatombe tivesse acontecido, sem que déssemos por isso? Estranho? Impossível? Estamos sempre a sofrer acidentes, confusões e imprevistos que acontecem, porque…”não me tinha apercebido”, “não tinha visto”… “ah! Estava distraído”…
Eu explico: por uma qualquer razão desconhecida o mundo acabou. Sim, é isso, parou, ficou como estava. O mundo como o conhecíamos acabou. Ora como é impossível tudo acabar ao mesmo tempo, sem que déssemos por isso e sem que ficasse cá alguém para contar (mas possível, embora os dados recolhidos apontam no sentido contrário da viabilidade da nossa teses) foi construído um cenário onde nos movimentamos, julgando estarmos em tempo real e na continuidade do que existia. Mas, tudo isso é mentira, falcatrua e aldrabice.
Para que isto tivesse acontecido, sem darmos por isso, muita coisa foi restringida, mas os conceitos básicos foram mantidos. Há carros a circular, chove, faz sol, andam pessoas na rua, comemos, dormimos e usamos as redes para trazer o passado e os amigos até nós.
Trata-se de uma espécie de “purgatório” que foi uma coisa que os cristãos inventaram onde anda tudo à roda, a fazer as mesmas coisas, sem finalidade ou destino, embora existam mitos que apontam para uma possível ascensão ao paraíso, para aqueles que “se portarem bem”, paraíso, que como se sabe, é uma coisa ainda mais chata e horrível do que estar em casa sem fazer nada. Aqui, no purgatório sempre se anda em roda, à roda, de roda, enfim…
Portanto, nesta versão do livro sagrado, o paraíso é um castigo.
Então o mundo passou a girar em energia paralela, com um conjunto de funções pré-definidas. Distância de dois metros entre as pessoas e a repetir eternamente acontecimentos do passado, já que o futuro foi excluído. Se parou, cristalizou e se imobilizou. Daqui não passa. Mal comparado, é como o que aconteceu aos fosseis pré-históricos, ficaram soterrados e gravados nas pedras. Dali não passam, nem evoluem.
Como a humanidade possui algumas características que a diferenciam dos outros seres vivos – o que é normal, pois plantas, minerais e animais também são seres vivos – a solução encontrada foi imobiliza-la e deixá-la a repetir tarefas básicas: comer, ir à casa de banho, comer, ir à casa de banho…perceberam? Sim, as vacas dos Açores já se tinham queixado desta vida, agora é a nossa vez! Aqui com a vantagem de que a emissão de gazes que produzimos para a atmosfera é menor do que o das vacas “felizes” dos Açores.
Ora, bem, foi nesta situação que algo se complicou. Chegou-se à conclusão (quem chegou? Os cientistas, pois claro) de que para manter os dois metros de distância entre cada pessoa, havia pessoas a mais. Então começou-se a sacrificar alguns, aos poucos, para manter o ritmo baixo e as agências noticiosas a funcionar - que criavam a ilusão de que #estava tudo bem# - a fim de equilibrar e tornar possível a vida, como pensamos que ela é. Um morto aqui, dois acolá, uma centena nos países com maior densidade populacional, duas dúzias naqueles que têm a mania que são espertos..e, por aí fora.
“A coisa” foi progredindo e a espiral começou a acertar o passo com a nova realidade, que já não era uma realidade, mas a repetição de realidades passadas, vividas ou inventadas. Havia regressão a vidas anteriores, vivências de situações nunca acontecidas, mas misturadas pelo misturador de cocktails do cérebro e dos resquícios que ali se engalfinhavam e saltitavam.
Era uma realidade não-realidade, como o tecido não-tecido ou as impressoras 3D e as redes 5G. Perceberam? Eu também não! Continuemos para Bingo ou para o penalty seguinte…espera lá, isso do futebol é que intriga, aqui a “coisa” foi radical, foi purga santa, raspagem de útero ou genocídio e o pessoal, embora barafustasse um “bocadinho” não se importou.
 Portanto tudo destruído e colocado em quarentena, como todos ficaram com os seus animais de estimação e os supermercados para irem fazer as compras, estava tudo bem. Não podiam ir fazer para-pente, nem descer rios em canoagem, ou subir ao Evereste, mas podiam alimentar a esperança de que…um dia tudo isso voltaria a ser possível, pelo menos enquanto essas memórias permanecessem no residual de cada um.
Agora a vida era assim, fazer todos os dias as mesmas coisas, pensando que se estava a fazer outras ou diferente. Levantar, ir ao banheiro, comer, sentar a ver televisão, comer, voltar a sentar, ir à janela, tomar banho, mudar de roupa, passear o cão…ah! A vida é bela! Nada de viagens, que era uma coisa que não se podia fazer, porque a distância, todas as distâncias haviam sido anuladas. Era um facto que os humanos desconheciam, mas para bem deles pois continuavam a sonhar com praias e visitas ao outro lado do mundo – mundo que como agora era plano, não tinha outro lado.
(plano, na concepção da nova realidade, que tinha eliminado as distâncias, estavam todos à distancia de um click. # como o Milos Menara bem explicara aqui há uns anos atrás# O planeta terra continuava redondo, mas isso agora não interessa nada)
O turismo sucumbira e extinguira-se logo que cada iate conseguiu atracar em porto seguro. Os aviões parquearam e são já sucata. As viaturas automóveis foram recolhidas para museus e as que não tinham interesse histórico destruídas e enterradas. O dinheiro passou a ser uma coisa virtual que aparecia nos mapas e era transacionado nas trocas entre si, de todas as espécies atingidas, mas que não permitiam comprar uma casa ou um terreno, porque registos, conservatórias e demais situações burocráticas estavam fechadas. Os presos foram libertados…é normal, não se pode estar preso duas vezes no mesmo sitio, não faz sentido, e muitas profissões acabaram. Incluindo a de bandido ou criminoso. Não se conseguia matar ninguém, espetava-se a faca e a pessoa continuava viva, nem sangue nem dor. Um desespero para os mais aguerridos. Também os assaltos terminaram...assaltar o quê, nada valia nada.
A única coisa que se traficava eram os desinfetantes. Havia-se criado a ideia de que desinfetando era possível prosseguir eternamente a desinfetar. Com o engenho do passado inventaram-se desinfetantes que não desinfetavam e ar que não se respirava, através de uma coisa chamada ventiladores, objeto que hoje já ninguém sabe o que seja. Havia água oxigenada e água com oxigénio. Havia álcool e cerveja barata e vinho de boa qualidade, fruto de muitos anos armazenado em cascos de carvalho. Sim, uma solução era beber e estar bêbado. As outras drogas desapareceram porque não havia mobilidade nem contrabando que conseguisse ser eficaz para inundar os aeroportos e as estradas, que estavam desertas e onde já começava a crescer o capim.
O tráfego chegou também à “queca”, pois basta ter os pés a dois metros de distância para que os detetores não percebam que se está junto. (perguntará o leitor, e como é que se faz isso? Ora, meus caros, isto não é um manual de instruções, por isso usem a imaginação, mas não tentem fazer isto lá em casa, pode ser perigoso, e se o uso da “queca” vos ofende, pensem naqueles bolos que se vendem nas pastelarias a que – e bem – se chamam queques) Era uma violação grave, mas havia maneiras de controlar. Apresentava-se um certificado de casamento ou vida em conjunto e já está. Pode seguir. Continuava a haver nascimentos, mas em menor quantidade. O objetivo deste mundo paralelo era acabar com todos os bebés, infantários, escolas e universidade. Aos poucos, ia-se conseguindo.
Os lares de idosos eram já uma coisa que constava em livros antigos e que os historiadores se esforçavam por dar a conhecer sem sucesso. Juntavam-se os velhos, todos juntos e espalhavam-se pelos cantos de uma sala a dormitar…absurdo! Ninguém acreditava.
Ainda restava muita energia para gastar. O mundo iria continuar por uns bons milénios. Devagar e devagarinho acabaria por desaparecer, mas isso ainda levaria muito tempo. Agora era mais comedido, aceitável e percetível para quem o quisesse analisar de fora. Até o ar que se respirava era melhor, mais saudável, quase uma versão gasosa da lendária “fonte da juventude”.
Não se podia levar a mal que muitos não manifestassem contentamento pela situação. Faz parte da natureza, nunca estar bem, satisfeita ou agradecida. Quer sempre outra coisa, que não o que tem.
É ignorar!

Carlos Arinto

Comentários

Mensagens populares