Lembra-te de olhar para cima



Alice corria pela floresta quando começou a ouvir uns sons estranhos. Não estava habituada a estar ali, era uma mulher urbana. Maldita a hora em que havia penetrado naquele bosque, que julgara poder atravessar, sem dificuldade, quando fazia a caminhada.
Todos os dias saia à rua para caminhar. Normalmente na praia ou no paredão – como era chamado – ou ainda pelas pistas que toda a edilidade havia mandado construir ao longo das ruas da cidade. Mas hoje, entusiasmara-se, estivera num monte ajardinado, com lagos, cisnes, bancos de jardins e plátanos ao longo dos caminhos. Também muitos ciprestes que apontavam os seus bicos aos céus formando uma cortina de envolvência uterina entre o interior e o exterior. Uma antiga lixeira que havia sido recuperada. Este espaço estivera vinte anos em purga, libertando gazes, agora estava limpa, neutralizada e acolhedora. Depois ao sair, por uma porta a sul, vira uma paisagem diferente:
Um desconhecido bosque estendia-se a perder de vista. Havia uma pequena placa a indicar um rumo, castelo, dizia. Alice resolveu seguir por ali. Não viria mal ao mundo. Estava bem, sem cansaço, se bem que transpirada, e gostava de respirar o ar dos sítios em que a natureza crescia livremente. Ao fundo avistavam-se o casario, na continuidade da urbanização.
Avançou e correu ziguezagueando por entre as árvores. Um pequeno barulho chamou-lhe a atenção, um grasnar de ave. Ali a natureza existia e era normal que pássaros e alguns insetos, repteis e pequenos roedores se abrigassem ali para fazerem a sua vida longe da cidade.
Depois o barulho, pareceu-lhe que vinha de um arrastar de pés atrás de si. Voltou-se, mas não descobriu ninguém. A folhagem no chão fazia com que o andar e o correr fizessem um barulho de paf.paf.paf. bem audível no silêncio reinante. O sítio era público e portante seria normal que outra qualquer pessoa por ali andasse, ela não estava sozinha no mundo.
Mais um barulho, como o arrastar de um réptil que não possuísse pernas, tipo cobra. Estaria a inventar coisas. Eram os sons da natureza a que não estava habituada. Ali não havia o barulho dos automóveis, as conversas que sempre se propagavam para além da intimidade, o correr de miúdos em gritarias … nem lixo espalhado pelo chão.
Continuou firme, se bem com um pouco mais de atenção à esquerda e à direita, por vezes deitando um olho para trás, num voltar de cabeça erguida olhando em frente, procurando a saída e o tal “castelo” de que nunca ouvira falar. Havia uma fonte de água há muito extinta, isso sabia, a que chamavam mina, embora nunca lá tivesse ido. Era natural que a qualquer momento, o caminho se desviasse, numa bifurcação, uma para o “castelo”outra para a saída. Ou então que o “castelo” e a saída ficassem na mesma direção. Logo se veria.
Mas o caminho parecia não ter fim e até o arvoredo em volta se adensava, parecendo mais compacto. Acelerou um pouco. Podia voltar para trás, é verdade, mas já não deveria faltar muito para chegar ao outro lado do bosque.
Mais um barulho, um voar sobre si, certamente estava a assustar os pássaros que se escondiam nas árvores. Ao longe como que um trote... deveria ser o autoestrada a projetar o barulho do trânsito sobre aquele lugar, qual trote qual carapuça. Pelo sim, e pelo não correu com mais ganas, com mais vontade. À esquerda e à direita alguém acompanhava o seu passo. Era impressão sua? Olhava mas não via nada. Olhou para o chão: os pés batiam com força na terra, nas rochas e nos destroços da vegetação. Paf.paf.paf. agora em aceleração.
Os sapatos laranja que comprara eram confortáveis, leves e permitiam-lhe andar sem esforço, mas já lhe doíam as canelas e a "barriga" da perna, porque o piso era irregular. Estava a começar a sentir-se entrar em pânico e isso não era bom. Que disparate.
Pensou no banho tépido que iria tomar, quando chegasse a casa, com muita espuma, e beber uma taça de água energética, como se champanhe fosse. O suor escolhia-lhe pela cara, tinha o fato colado ao corpo. Ótimo pensou, estou a largar as calorias e as gorduras desnecessárias. Limpou os olhos com a mão, numa passagem rápida enquanto prosseguia com os braços a dardejarem.
Foi então que uma espécie de guindaste desceu do cimo da árvore mais alta, que ali se encontrava, e, num ápice, puxou a cabeça de Alice, com o corpo em balanço esperneado, para cima. Era uma teia feita de cordas viçosas, uma rede, um gancho curvo afiado, um estilete de braços múltiplos que se abrem em rosa e se fecham em ostra? Não se sabe! Ouve um grito. Apenas um, depois o silêncio e uma pequena revoada de sementes secas e folhas a caírem do alto para o chão, flutuando em arco até poisarem pacificamente sem alarido por cima de outros dejectos, turfas e materiais em decomposição. Era um grifo.
Alice nunca tinha olhado para cima, era em cima que se escondiam os predadores. Nunca mais se soube de Alice, nem o bosque voltou a ser visto. Dizem que só aparece uma vez em cada dez anos. Alguns dizem que é mentira, outros juram ser verdade.

Carlos Arinto

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